Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Canto, Ernesto do

[N. S. Roque, Ponta Delgada ? m. Ibid., 1900] Filho mais velho do segundo casamento do morgado José Caetano Dias do *Canto e Medeiros, acabou por ser o administrador e proprietário dos bens patrimoniais da casa do pai, utilizando proveitosamente parte desses rendimentos ao serviço de uma notável obra cultural cuja expressão máxima é sem dúvida a colecção de 12 volumes do Arquivo dos Açores (1878-1892) publicados sob a sua coordenação e financiamento. A magnitude desta iniciativa particular, cuja singularidade deve ser destacada no quadro da moderna historiografia portuguesa, é razão mais do que suficiente para inscrever o nome de Ernesto do Canto no panteão do oitocentismo açoriano, sobretudo tendo presente o quanto este seu projecto editorial contribuiu no sentido de consolidar uma consciência histórica colectiva entre as diversas parcelas do arquipélago. Para além do monumento historiográfico erguido no último quartel do século XIX, o respeitado erudito micaelense desenvolveu ainda assinalável actividade no domínio dos estudos bibliográficos, genealógicos, naturalistas e agrícolas, pelo que a avaliação completa do seu labor intelectual não deve apenas circunscrever-se ao campo das escavações históricas. Por outro lado, o facto da maioria dos seus trabalhos só tomar expressão de 1875 em diante, quando Ernesto do Canto já dobrou os 40 anos de idade, cria por vezes a falsa ilusão biográfica de tomarmos a parte pelo todo, ou seja, de vermos apenas como o erudito alguém que também desenvolveu tarefas importantes na administração pública, distrital e municipal, que ocupou cargos de chefia em associações recreativas, filantrópicas, agrícolas e culturais, assegurando ainda pesadas responsabilidades patrimoniais, familiares e económicas a partir da morte do pai (1858) e do seu próprio casamento (1859). Verdadeiro modelo de cidadania prestante e amor à pátria, exemplo característico de uma élite terratenente pautada pelo cosmopolitismo e ilustração, Ernesto do Canto é uma figura epigonal do segundo liberalismo que resume, como poucas, o espirito dinâmico e civilizador do século XIX açoriano no decurso da Regeneração.

Genealogista, historiador e bibliógrafo Apenas na década de 70 é que começam a tornar-se visíveis sinais do seu crescente entusiasmo pelo estudo do passado local. Constituída a família, construídos os jardins, só então parece ter arranjado tempo e (porventura) disponibilidade financeira para se dedicar a outra ordem de interesses. O projecto do Arquivo dos Açores nasce em 1876 das conversas mantidas entre Ernesto do Canto e João Teixeira Soares de Sousa durante a estação de veraneio nas Furnas, mas já antes disso os dois se encontravam envolvidos (em conjunto com Carlos Maria Gomes Machado) na elaboração de uma obra genealógica açoriana, conforme relata o próprio Ernesto em carta endereçada a Teófilo Braga. Manifestamente, a genealogia foi o vestíbulo de entrada de Ernesto do Canto para o domínio mais amplo da história açoriana, apoiado decerto nos apontamentos genealógicos alinhavados por seu pai, bem como nos documentos e obras que este lhe havia legado na sua livraria. Como qualquer genealogista, procurou reunir dados sobre a origem e ramos da própria família no espaço reinol, conforme testemunha um curioso conjunto de cartas que lhe dirige Camilo Castelo Branco em 1874 com informações sobre os Canto vimaranenses no século XV. A verdadeira dimensão do labor genealógico de Ernesto do Canto é dificilmente mensurável pelas correspondentes publicações: em rigor apenas um breve estudo sobre a familia Ponte-Quental que Joaquim Araújo lhe consegue arrancar em 1893 para o In Memoriam a Antero, muito embora também possamos considerar a monografia sobre Os Corte-Reaes (1883), que constitui de resto o seu titulo de candidatura à Academia das Ciências de Lisboa em 1886. Mas não é só o estágio genealogista, nem a influência coimbrã de um partilhado gosto pelos estudos históricos que explicam por si só a súbita aceleração dos projectos de Ernesto do Canto a partir de 1875. No Verão desse mesmo ano, chegava a S. Miguel a colecção das Variedades Açorianas, adquiridas por José do Canto à viúva do micaelense José de Torres, falecido em Lisboa no ano de 1874. Ora, independentemente dos méritos, ou não, da obra e acervo documental de José de Torres, este literato que abandonou S. Miguel em 1852 para prosseguir na capital uma interessante e pouco estudada carreira no Ministério das Obras Públicas, gozava entre os seus patrícios e contemporâneos do incontestado estatuto de historiador da ilha. Tanto assim era que a Câmara de Ponta Delgada (em cuja vereação Ernesto do Canto se integrava) convida em 1859 o ?ilustre erudito? a escrever a história do município, ficando depois acordado que esta financiaria a publicação do 1° volume de uma História dos Açores que o mesmo há muito tinha em preparação. Crescentemente absorvido pelos seus inovadores trabalhos na área da Estatística (que de resto são o seu título de candidatura à Academia das Ciências em 1862), José de Torres jamais irá escrever a prometida obra mas acaba por gerir silenciosamente a expectativa criada até que, em 1874, a sua morte coloca um ponto final sobre o assunto. A relação entre estes factos e o arranque dos trabalhos históricos e bibliográficos de Ernesto do Canto é confirmada por uma carta que dirige a Teófilo Braga em 1875, colocando-o ao corrente do seu «plano de publicar todos os impressos raros, documentos ou manuscritos que sirvam de elementos para a história deste Arquipélago», ao mesmo tempo que diz aguardar «a vinda das Raridades Açorianas [sic] para ver o que colheu de lá o José de Torres, e saber depois se haverá mais a extrair desse arquivo.» A colecção de documentos impressos e manuscritos coligida nas Variedades prefigura, afinal, aquilo que virá a ser o Arquivo dos Açores, uma miscelânea documental cujo denominador comum é a história açoriana e que, nas palavras da sua Redacção, «se propõe fazer, não a história deste arquipélago... mas simplesmente reunir os materiais para futuros obreiros erguerem à civilização esse monumento.» Ernesto do Canto é, neste sentido, um continuador de José de Torres mas, ao contrário do seu patrício, tem como objectivo confessado não a escrita da História dos Açores, mas a divulgação de instrumentos que permitam a outros escrevê-la. Esta criteriosa decisão configura uma ruptura (a dois níveis) com as tendências até então dominantes na historiografia oitocentista açoriana: por um lado, ao pretender abarcar todas as parcelas do arquipélago, vai contra os modelos vigentes da ?história distrital? (em grande parte subsidiários das reformas administrativas do Liberalismo) e monografia insular; por outro, ao privilegiar o documento em detrimento da síntese, representa a afirmação de um novo paradigma historiográfico em que o modelo erudito se sobrepõe claramente ao literário. A execução deste inovador programa editorial envolveu diversos estudiosos e, nesse sentido, o Arquivo dos Açores pode e deve ser considerado como uma escrita a várias mãos, não obstante o papel decisivo que Ernesto do Canto desempenhou enquanto dinamizador e coordenador do projecto. É aliás nestas funções que o seu contributo merece ser destacado pois, como historiador e ensaísta propriamente dito, Ernesto legou-nos um reduzido número de títulos que, para além da já referida memória sobre os Corte Reaes, se resume ao polémico Quem deu o nome ao Labrador, publicado em 1892, quando problemas de saúde e fadiga impõem a paragem do Arquivo dos Açores e a desaceleração brusca da sua actividade intelectual. Das duas fases que compreendem a investigação histórica, a heurística e a hermenêutica, Ernesto do Canto foi sobretudo um notabilíssimo cultor da primeira e é nesta perspectiva que importa não só compreender a sua obra historiográfica, como nela integrar devidamente os trabalhos bibliográficos que produziu. Ao contrário de seu irmão José do Canto (cuja rica Biblioteca compreendia uma livraria camoniana de excepção), Ernesto era mais um bibliógrafo (aquele que, no sentido etimológico do termo, ?transcreve livros?) do que um bibliófilo. Efectivamente, quer o Arquivo dos Açores quer os trabalhos bibliográficos publicados, confirmam-no como um divulgador (e não coleccionador) de obras e edições raras. Aliás, a própria decisão testamentária de deixar a sua preciosa livraria particular (acompanhada do respectivo inventário/catálogo preparado pelo irmão mais novo, Eugénio do Canto) à Biblioteca Pública de Ponta Delgada, simboliza bem o valor de uso (e não de tesouro) que para este investigador da história açoriana tinham os livros por si reunidos. Os primeiros estudos bibliográficos que dá à luz em 1879 e 1883, respondendo a solicitações de Aníbal Fernandes Tomás e Joaquim de Araújo, incidem sobre temas relacionados com a historiografia ultramarina portuguesa, área a que como ?açorianista? e membro fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa sempre esteve particularmente ligado. Em 1888, Ernesto do Canto publica o seu primeiro grande trabalho de fôlego no domínio da bibliografia portuguesa, intitulado Ensaio Bibliographico. Catalogo das obras nacionaes e estrangeiras relativas aos sucessos politicos de Portugal nos anos de 1828 a 1834. Trata-se de uma obra pioneira a nível nacional que marca, pelo seu formato erudito e distanciamento ideológico, a emergência de uma nova abordagem (mais científica e menos doutrinária) ao passado recente das Lutas Liberais. A escolha deste conturbado período da contemporaneidade portuguesa é, uma vez mais, ditada pelo denominador comum dos Açores, dadas as circunstâncias históricas muito particulares que ligaram estas ilhas ao governo da Regência e à implantação do Liberalismo no país. Segue-se aquela que é sem dúvida alguma a sua melhor obra de sistematização bibliográfica, a Biblioteca Açoriana, impressa em 1890, mas cujo plano de publicação já estava a ser preparado desde 1875, na esteira do trabalho desenvolvido por José de Torres e na sequência da incorporação das Variedades na livraria de seu irmão José, conforme ele próprio esclarece a Teófilo Braga em 1878, quando este lhe sugere a ideia de dar à estampa nos fascículos do Arquivo dos Açores a lista bibliográficas de todas as obras, tanto nacionais como estrangeiras, concernentes ao arquipélago. Muito embora a Biblioteca Açoriana tivesse sido publicada autonomamente, é de sublinhar a sua articulação orgânica com o Arquivo dos Açores, pois ambos os trabalhos se complementam enquanto instrumentos de pesquisa (ainda hoje insubstituíveis) para os investigadores. Dois anos volvidos sobre a publicação deste livro, sai uma segunda edição com aditamentos (1892) do seu anterior Ensaio sobre as Lutas Liberais, confirmando a máxima de que em bibliografia nenhuma obra é definitiva e prenunciando, como de resto veio a suceder, nova edição da Biblioteca Açoriana, impressa já no próprio ano da sua morte, em 1900. Esta última obra, como de resto outros pequenos trabalhos vindos a lume no período de decadência física de Ernesto do Canto, acabou por ser publicada graças às diligências de seu sobrinho Eugénio Pacheco, a cujas solicitas intervenções junto do tio devemos a redacção, em 1897, da sua singela Noticia autobiográfica (1900), bem como a divulgação nas páginas da imprensa periódica dos interessantes apontamentos históricos intitulados Noticia sobre as egrejas, ermidas e altares da ilha de S. Miguel (1896).

Conclusão O impacto e significado cultural da obra de Ernesto do Canto não poderá apenas ser medido pelo já de si assinalável número de trabalhos a que deixou associado o seu nome. O riquíssimo acervo da livraria oferecida à Biblioteca Pública (monografias, periódicos, cartografia, manuscritos e correspondência literária e cientifica) não só reflecte o amplo universo das suas leituras e preocupações intelectuais, como traduz a incessante preocupação de preservar arquivos (como o da Alfândega de Ponta Delgada) e fundos documentais (como o da Casa Miguel Canto e Castro) de enorme relevância para a memória colectiva do arquipélago. Considerado por muitos dos seus contemporâneos o fundador da moderna historiografia açoriana, Ernesto do Canto personifica ainda um modelo socialmente singular de estudioso local oitocentista, que poderíamos denominar (por analogia com os consagrados gentleman formers micaelenses do mesmo século) de gentleman erudito. O irmão mais novo, Eugénio do Canto (1836-1915), seguiu-lhe as pisadas como editor de documentos e estudos sobre história açoriana e da expansão portuguesa, mas fá-lo já no fim da vida e - pese embora o valor historiográfico da sua (quase que ignorada) obra - numa escala bastante mais modesta. Efectivamente, a empresa do Arquivo dos Açores enquanto iniciativa particular de um cavalheiro cuja fortuna económica se conjugou com o amor à ciência e à pátria, é monumento único na historiografia insular e portuguesa de Oitocentos. Carlos Guilherme Riley (2002)

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