Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Santa Cruz da Graciosa (concelho)

Urbanismo Santa Cruz e Praia são os dois lugares urbanos por excelência da Graciosa. Embora com características próprias muito diversas, ambas as vilas contribuem para a qualificação do espaço público edificado da comunidade local.

A povoação de Santa Cruz da Graciosa constitui o principal lugar urbano desta ilha. Implantada na costa norte-oriental, ter-se-à desenvolvido a partir dos meados do século XV, e foi elevada a vila em 1486, com foral de D. Manuel em 1500. A sua implantação constitui, a par daquela da Ribeira Grande de São Miguel, a maior excepção ao povoamento urbano dos Açores, quase sempre com os seus núcleos mais significativos implantados nos quadrantes e costas de sul, de sul-poente e sul-nascente.

Razões de uma melhor acessibilidade marítima (pelos recessos costeiros locais, como o da Calheta) e/ou a existência de terrenos mais fáceis de ocupar, por mais planos e férteis ? numa ilha de muito reduzidas dimensões, logo com escassas alternativas de escolha ? terão ditado a persistência e o vingar histórico desta implantação especial e algo anómala.

De qualquer modo, a modesta, mas original e muito bela povoação de Santa Cruz, estrutura-se numa orientação sensivelmente nascente-poente, e «abre» a sua rede viária para sul, «virando as costas», de certa maneira, à agreste costa nortenha.

Seguindo a detalhada análise executada por Paulo Gouveia, aquando do seu estudo para o Plano de Salvaguarda da Vila, podemos considerar, por um lado, três fases no seu desenvolvimento urbanístico, e, por outro, a definição de três áreas urbanas constituintes do seu tecido histórico principal:

«O assentamento original mais primitivo organiza-se a partir da primeira ermida de Santo André [demolida em 1844], localizada no que é hoje o Largo Conde de Simas [antigo largo de Santo André], progredindo como estrutura de vias paralelas até outro elemento urbano organizador, o Largo da Calheta. A via principal que ligava directamente estes dois pontos era a tradicional ?Rua Direita? [hoje rua Manuel Correia Lobão], que, como se sabe, estabelecia normalmente a ligação entre as ?portas? do aglomerado.» (cf. Gouveia, s.d.).

Esta estrutura, de desenho muito simples, é formada por três ruas sensivelmente paralelas entre si (além da Direita, a rua do Galeão / Capitão Francisco Pires de Ávila, e a rua do Boqueirão / Padre João / Comandante Carlos Pereira Vidinha), e que convergem em dois pontos focais, os largos citados da Calheta e de Santo André ? formando assim, em planta, um contorno aproximadamente fusiforme, que corresponde historicamente a modelos urbanísticos da fase medievo-renascentista, patentes por exemplo nos contemporâneos traçados de Vila do Porto (Santa Maria) ou da Povoação (São Miguel).

Um segundo tempo de urbanização é mencionado por Paulo Gouveia:

«Outro núcleo de casario começa entretanto a formar-se a Este, um pouco distante do primeiro, cujos elementos ordenadores são as ?casas do Capitão Donatário? e Igreja Matriz, de sistema construtivo mais nobre, e ainda a Ermida de São Pedro, pronta antes da matriz, a Igreja da Misericórdia e o Hospital que rematam o povoamento neste lado da Vila, por certo ligado ao caminho conducente à Vila da Praia e ao Porto da Barra, lugar importante ao tempo. Portanto, é naturalmente mais tarde que deles surjam registos históricos (finais do séc. XV).» (cf. Gouveia, s.d.).

Assim, estes dois pólos de urbanização terão firmado a imagem urbana essencial de Santa Cruz, já bem conformada nos inícios de Quinhentos. Além deles (e entre ambos) um elemento fundamental de ligação, o espaço público central, formou-se também ? a par do que poderíamos considerar uma terceira fase, mais periférica e de completamento, da formação urbana:

«Entre esses dois núcleos, ficam os pauis, de provável origem natural, certamente aproveitados pela urbe para cumprir uma determinada função, e à volta dos quais surge logicamente o ?Rossio?.

Ainda neste período, a Vila cresce aparecendo o Largo de Barão de Guadalupe e a rua do Arrabalde, o Largo e Rua do Corpo Santo e a antiga Rua da Casa da Pólvora.» (cf. Gouveia, s.d.).

Ainda hoje o conjunto dos pauis e do antigo terreiro do rossio (a actual praça Fontes Pereira de Melo) constituem o espaço mais impressivo da povoação, com o seu cuidado ajardinamento romântico, e a presença monumental das possantes araucárias. São estes elementos e espaços bem representativos do papel central e cívico que o acesso à água gerou historicamente: na parte baixa do povoado, nascia de modo orgânico o sítio do povo, o lugar lógico de reunião, do estabelecimento do poder municipal ? a par do tanque ou do fontanário de abastecimento à comunidade (tal como, a outra escala, a Praça Velha de Angra está historicamente relacionada com a proximidade da Ribeira dos Moinhos).

Este aspecto, dos pauis e do abastecimento da água no lugar baixo e central dominante da urbe, torna-se ainda mais pertinente numa ilha de escassa pluviosidade (precipitação anual média de 900 mm, ao contrário doutras ilhas açorianas, que registam valores acima dos 1.000 mm). Trata-se aqui da presença de um verdadeiro «urbanismo da água», contribuindo para a definição do lugar central e cívico da principal vila da ilha ? complementada também pela existência, noutras freguesias e lugares da Graciosa, de uma «arquitectura da água», feita de grandes reservatórios, fontanários, lavadouros, que procuram potenciar a pouca água disponível.

No decorrer dos séculos XVII e XVIII, a consolidação urbana da vila de Santa Cruz processa-se pela edificação de novos quarteirões, nas envolventes ou na continuidade do núcleo já antes definido, e pela lenta ocupação edificada ao longo de algumas novas ruas abertas no prolongamento do povoado ? preenchidos aqueles e estas com vários solares e casas nobres, dentro do gosto da «arquitectura chã» e do chamado «barroco açórico». De mencionar ainda o papel das pequenas fortificações costeiras, junto aos espaços mais centrais (Santa Catarina), e a edificação, de sentido tão simbólico como de dimensão paisagística, das ermidas de Nossa Senhora da Ajuda e de São João, no vizinho e sobranceiro Monte das Violas (Monte da Ajuda).

Uma leitura algo divergente da evolução da estrutura desta vila (pois considera a área antiga do povoado a nascente, e a recente a poente), embora mais genericamente caracterizadora, é apresentada na obra Arquitectura Popular dos Açores (2000: 270-271): «Santa Cruz (...) volta-se de costas para o mar e projecta-se no interior do território, evidenciando a sua vocação agrícola (...). É das poucas povoações açorianas, com alguma importância, localizada numa costa norte. Constitui o centro administrativo e comercial da ilha, com um porto repartido por três ancoradouros situados em pequenas enseadas: o Cais da Barra, o primeiro a ser utilizado, implantado a oriente e ao abrigo da Ponta do Pesqueiro; o Cais das Fontainhas, mesmo no centro; e o Cais da Alfândega que, com a entrada em desuso do primeiro, veio a ser o mais importante e mais apetrechado. (...) a sua estrutura [da vila], ditada por exigências de articulação do Cais da Alfândega com o largo central, representa o compromisso entre um modelo inicialmente irradiante e uma malha linear que se desenvolveu para ocidente. (...). O núcleo mais antigo, a leste, esboça uma retícula em que sobressaem as igrejas Matriz e da Misericórdia, entre as quais sai a estrada que se dirige à parte oriental da ilha. O núcleo mais recente e mais densificado, a oeste, é constituído por uma malha de cinco ruas paralelas entre si e ao litoral (...) estas ruas, divergindo do largo, voltam a encontrar-se junto ao Cais da Alfândega, estabelecendo, assim, a ligação entre os dois principais pólos urbanos: o porto, junto ao qual se fixaram numerosas adegas e lagares, e o largo onde se localizam o comércio e os principais serviços».

Para além das diferentes leituras evolutivas do tecido urbano que se apresentaram atrás, é indiscutível a existência de dois pólos distintos e formalmente muito coesos: as cinco ruas a poente e o conjunto a nascente do largo central. O mais provável é que se deva ter de conciliar a hipótese de formação sequencial, de um ou de outro, com a gradual definição, e coexistência, de ambos.

De referir ainda, em termos de espaços urbanos da ilha, o núcleo da Praia, elevada a vila em 1546 (contava então 46 moradores; foi sede de concelho, extinto em 1867), uma singela mas elegante povoação linear, costeira, virada a nascente, e desenvolvida ao longo da pequena baía, em suave curvatura. Com quase só uma rua paralela à via marginal e piscatória, esta estrutura articula os edifícios e os espaços públicos, cívicos e religiosos, principais.

Registemos a descrição sucinta que dela faz a Arquitectura Popular dos Açores (2000: 268-269): «Organiza-se a partir de uma via marginal, que constitui o eixo de uma incipiente estrutura urbana linear, de onde saem as pequenas transversais de ligação a uma rua secundária e interior. A rua principal bifurca-se, no seu extremo meridional, dando origem a um ramo que, cruzando-se com a rua interior, segue para o Sul da ilha. No cruzamento forma-se um largo desafogado onde se encontra a igreja de São Mateus. A marginal é constituída, no lado interno, por uma extensa banda de edifícios de dois e três pisos, com fachadas simples, bem ritmadas, formando um conjunto homogéneo. Do lado externo, está defendida por um muro de suporte. O porto, responsável pela animação urbana, localiza-se no extremo norte da baía». José Manuel Fernandes

 

Arquitectura Este concelho, que abrange toda a ilha da Graciosa, inclui alguns aspectos notáveis no que respeita aos seus espaços edificados, com relevo para a arquitectura religiosa, a doméstica (urbana, rural e vernácula) e a utilitária. As igrejas e as capelas, nomeadamente as matrizes e o conjunto das capelas do Monte da Ajuda, representam bem a notabilidade do tema sacro; as casas urbanas solarengas da Vila de Santa Cruz, e vários exemplos de casas rurais de dois pisos, alimentam a qualidade da arquitectura de habitação; e os diversos reservatórios, fontanários e tanques de água celebram a pujança da chamada «arquitectura da água» da ilha.

Na vila de Santa Cruz, podem destacar-se várias construções de índole religiosa, entre capelas e igrejas.

A igreja paroquial de Santa Cruz, datando do século XVI, e reconstruída e ampliada no século XVIII, possui uma abóbada de nervuras em cantaria no seu baptistério, bem como um notável retábulo pintado sobre madeira, quinhentista, por Cristóvão de Figueiredo, para além dos altares em talha dourada, e dos azulejos parietais do século XVIII.

A capela do Monte da Ajuda, de impressiva implantação paisagística, é também do século XVI, e apresenta uma expressão exterior algo «fortificada» (dada a presença de contrafortes em posição angulosa, ao modo manuelino). Interiormente contém temas manuelinos, e azulejos datando dos meados do século XVIII. Uma abóbada manuelina em pedra cobre a capela-mor. Esta original construção, envolvida e protegida por um murete, forma conjunto com os anexos e as antigas casas de romeiros, e ainda, em termos de paisagem, com as duas outras capelas, do Salvador e de São João, pois que todas elas bordejam a cratera do Monte da Ajuda.

De mencionar ainda outros templos, como o da Misericórdia, no centro da mesma vila.

Em termos da sua arquitectura doméstica, a vila possui alguns notáveis exemplares, sobretudo pelas suas decorativas fachadas, tirando partido estético do contraste entre o negro do basalto e o branco da caiação.

De facto essas casas urbanas apresentam com frequência o tema dos lintéis curvos nas fachadas, em pedra basáltica, tomados e interpretados como elementos de ritmo e de decoração, pela sua repetição e interligação ao longo dessas fachadas, sobre os vãos e, de modo contínuo, sobre as paredes entre-vãos: dois exemplos, em casas junto ao jardim e pauis de Santa Cruz, são a casa da Família Spínola e a casa de Francisco Barcelos. Paulo Gouveia refere as várias casas nobres de Santa Cruz, mencionadas em função dos seus proprietários ou fundadores (Gouveia, s.d.).

De mencionar ainda o bairro de casas económicas Conde de Simas, à Barra, característico desta tipologia em meados do século XX.

Alguns exemplos de intervenções modernas, ou dos séculos XIX e XX, também são patentes na ilha, apresentando obras mais interessantes sobre o ponto de vista das infra-estruturas e dos equipamentos.

É o caso da obra do túnel rodoviário de acesso à Caldeira, de 1952/1953, cuidadamente edificado em pedra; e da portentosa coluna de escadas de acesso vertical, também em pedra, encastrado na famosa Furna do Enxofre, datando dos anos 1940-1950. Finalmente, a modesta mas alegre construção de apoio às Termas do Carapacho, de decorativa fenestração, completa este conjunto de referências. De mencionar ainda o Museu Etnográfico de Santa Cruz, instalado em antigo solar urbano, com adaptação dos seus espaços internos, bem como o farol de vigilância costeira, na Ponta do Carapacho, a sul da ilha. Em betão armado, de 1956, apresenta o seu corpo elevado ritmado por pilares salientes, que exprimem bem a estética daquele material (embora mais simples e de menores dimensões, está um pouco dentro da linguagem daquela da Ponta dos Rosais, em São Jorge). O outro farol a assinalar na ilha, sito na Ponta da Barca, é mais antigo, de 1930, e apresenta forma cilíndrica, dentro de uma expressão arquitectónica mais tradicional.

Já do século XXI, em Santa Cruz, destaquemos o Palácio de Justiça, obra de expressão despojada, pelos arquitectos Jorge A. Palma e Susana Feijó.

A chamada «casa popular» apresenta um tipo original, dentro do modelo da casa açórica: a habitação tradicional era executada frequentemente com uma das águas da cobertura prolongada para trás, a cobrir anexos ou ampliações ? em casas térreas ou de dois pisos. Grandes chaminés «de mãos postas», ou em rudes volumes paralelipipédicos, também constituem um tipo formal que ocorre com frequência. A casa tradicional de feição popular, sobretudo patente no meio rural, nos meados do século XX, está descrita na obra de Ferreira (1968), e naturalmente, encontra-se analisada em pormenor na Arquitectura Popular dos Açores (2000).

Na mais modesta vila da Praia, podemos destacar a igreja paroquial de São Mateus, do século XVI, reconstruída no século XIX, com uma fachada neo-clássica, recordando obras paladianas de Fabri no Algarve, e portanto fora da mais corrente tradição açórica; possui assinaláveis altares em talha. Também de referir é a igreja da Misericórdia da Praia, Oitocentista.

Outras obras de função religiosa a citar são: a igreja paroquial de Guadalupe, de Nossa Senhora de Guadalupe, do século XVIII, com altares em talha dourada; a ermida de Nossa Senhora da Vitória, do século XVII, e ainda a igreja paroquial da Luz.

É na arquitectura de produção e armazenamento que a Graciosa exibe uma série de estruturas muito originais, e que no seu conjunto apontam para um legado significativo, disperso pela ilha, pertencendo à chamada «arquitectura da água».

São as cisternas e fontanários, alguns grandes tanques e reservatórios, que se implantaram ao longo dos caminhos e com acesso público, a céu aberto (por meio de balcões de acesso para recolha da água no muro de suporte e com acesso em rampa para os animais).

São também os grandes reservatórios fechados, enterrados, geralmente de gestão municipal, para armazenamento e distribuição pública da água. Estas estruturas apresentam um espaço interno paralelipipédico, dividido em várias naves, separadas por arcadas assentes em pilares quadrangulares, e com cobertura por abóbadas de berço rebaixadas. Por vezes incluem estruturas anexas, como lavadouros públicos e tanques a céu aberto.

Damos aqui três exemplos deste tipo de construções: os Tanques Velhos, de 1863, na Serra das Fontes; o Tanque do Atalho, de 1866, em Santa Cruz; e o Tanque Velho, de 1869, na Serra Branca.

Um caso de tanque a céu aberto, mas não associado a reservatório, é exemplificado pelo do Caminho do Tanque, no sítio da Luz.

Também se devem registar os chamados «poços de maré» (que ocorrem igualmente noutras ilhas mais secas, como no Pico), de que é exemplo, na freguesia de Guadalupe, no Caminho da Igreja, um recinto com a «boca» semi-circular, murado, com acesso central.

Igualmente existem na ilha muitos chafarizes e bebedouros, de que exemplificamos com: o chafariz monumental da Praia, de 1864, com as armas reais (no largo Padre Dr. Manuel Rocha); o chafariz do Caminho do Tanque, na Luz, de 1850 (o mais antigo datado); e ainda, com as mais correntes peças, dos finais do século XIX (como o da Lagoa, de 1896), e os do Estado Novo, já nos meados do século XX. José Manuel Fernandes

Bibl. AAVV (2000), Arquitectura Popular dos Açores. Lisboa, Ordem dos Arquitectos. Açores / Publiçor / Guia Turístico (1998-1999) (18a. edição). S.l., Publiçor. Bruno, J.; Caldas, J. V. (2006), Ilha Graciosa / Património Arquitectónico-Panorama Geral / Arquitectura Doméstica / Arquitectura da Água. Ponta Delgada, ARENA / Agência Regional da Energia e Ambiente da Região Autónoma dos Açores (conjunto de três opúsculos). Costa, F. J. (1845), Memória Estatística e Histórica da Ilha Graciosa. Angra do Heroísmo, Imprensa de Joaquim José Soares. Ferreira, A. B. (1968), A Ilha Graciosa. Lisboa, Livros Horizonte [2.ª edição 1987]. Furtado, E. (2005), Guardiões do mar dos Açores. S.l., Ed. Autor. Gouveia, P. (s.d.), Plano de Salvaguarda de Santa Cruz da Graciosa, policopiado. IPIA / Inventário do Património Imóvel dos Açores, coordenação pelo IAC / Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo, 1998-2007, em curso. Moniz, A. C. (1981), Ilha Graciosa (Açores) Descripção Histórica e Topográfica. Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura [1a. edição 1883]. Pereira, V. C. D. (1986), Igrejas e Ermidas da Graciosa. Angra do Heroísmo, Direcção Regional dos Assuntos Culturais/Secretaria Regional da Educação e Cultura.