Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Afonso VI, D.

Rei de Portugal [N. Lisboa, 21.8.1643- m. Sintra, 12.8.1683] Filho de D. João IV e de D. Luísa de Gusmão, a sua reclusão durante mais de cinco anos na fortaleza terceirense do Monte Brasil, entre Junho de 1669 e Agosto de 1674, confere a este monarca um lugar ímpar na história dos Açores. Durante o seu reinado, os êxitos militares portugueses contra o exército espanhol valem-lhe o epíteto de Vitorioso, pois garantem em definitivo a Restauração, motivando a assinatura da paz em 1668. Porém, cedo ressalta a incapacidade de mando de D. Afonso e a vantagem da sua substituição pelo irmão D. Pedro. No entanto, o desentendimento da nobreza e a astúcia de D. Luís de Vasconcelos e Sousa, conde de Castelo Melhor, sempre permitem a entronização do príncipe, apesar da oposição da rainha-mãe, então obrigada ao abandono da regência, logo que o filho atinge a maioridade em 1657. Contudo, a incapacidade do rei, a frustração da nova rainha, a ambição do infante D. Pedro, o ardil dos diplomatas, a cobiça dos nobres e o assentimento dos povos determinam a deposição de D. Afonso VI em Novembro de 1667. A averiguação dos actos ainda demonstra a justeza do processo de abdicação, aparentemente movido pelo desígnio da obtenção de um melhor governo, onde logo releva a maior utilidade da regência de D. Pedro e simultaneamente o respeito pela dignidade do deposto, que conserva sempre os títulos honoríficos. Todavia, a subsequente anulação do matrimónio de D. Afonso VI com D. Maria Francisca Isabel em Março de 1668 e, sobretudo, o rápido consórcio da ex-rainha com o então regente manifestam a urdidura de uma conspiração. Por outro lado, a consecução em cortes da ordem de custódia do destronado certifica a força da tramóia. Com efeito, o isolamento de D. Afonso VI constitui uma garantia de estabilidade política, numa conjuntura de proliferação de facções desavindas. Neste contexto, surge naturalmente a opção pelo afastamento da capital e o concomitante projecto de exílio na ilha Terceira.

D. Afonso VI desembarca em Angra, na abra do Porto Novo, em 21 de Junho de 1669, no termo da realização de uma viagem desde Lisboa na frota de D. Francisco de Sousa, marquês de Minas e conde do Prado. Na companhia do monarca, viaja um séquito de aproximadamente meia centena de assistentes e criados, dirigido por Manuel Nunes Leitão, provedor da casa, que só assume o governo do castelo depois do falecimento do venerável Sebastião Correia de Lorvela em 1673. A bordo, ainda permanece uma força de 100 homens, cujo retorno ao Reino prontamente se decide, após conferência com as autoridades locais, que relevam as tradicionais dificuldades de entendimento entre os naturais e os militares forasteiros. No começo do Outono, verifica-se a chegada do corpo de cavalaria. Para manutenção da comitiva, que se instala nos mais nobres aposentos da fortaleza, o regente estabelece um estipêndio mensal de 2500 cruzados, cuja liquidação sempre pontual garante o decoro régio.

O afastamento dos enredos da corte e a segurança da fortaleza do Monte Brasil determinam a opção pelo desterro de D. Afonso VI na ilha Terceira. Todavia, o regente D. Pedro invoca também a tradicional fidelidade dos terceirenses e até o respeito pela vontade do rei, eventualmente resultante das descrições do vasto reduto do castelo de S. João Baptista, propício ao desenvolvimento das actividades lúdicas. Porém, volvidos apenas cinco anos, o retorno do monarca quadra num contexto de malogro das expectativas iniciais, considerando a suspeita de conchavo dos naturais com o partido do soberano. Assim, os imperativos da estabilidade ainda demandam o reforço da vigilância, então dificultada pelo distanciamento dos Açores e pela concomitante irregularidade das comunicações. Nestas circunstâncias, a análise das relações políticas e sociais de Angra ao tempo da permanência de D. Afonso VI na Terceira adquire um significado muito relevante.

A chegada de D. Afonso VI à baía de Angra sucede sob um absoluto sigilo, que gera uma grande surpresa. De facto, só nos três dias anteriores ao desembarque de 21 de Junho de 1669, o comando da expedição notifica os poderes públicos, designadamente o governador do castelo, o provedor da fazenda real, a câmara, o corregedor, o provedor das armadas e o cabido da Sé. Na altura, a inesperada notícia alcança, entretanto, uma rápida divulgação, que atinge todos os recantos da ilha, movendo o espanto e a curiosidade dos povos, ainda acrescentados pelo boato do interesse inglês pela guarida do soberano. Assim, no momento da entrada do monarca na cidade, a população invade a zona ribeirinha, demonstrando em surdina um sentimento de compaixão, que indirectamente reprova o comportamento do regente D. Pedro e de D. Maria Francisca Isabel. Esta reacção popular, de resto muito compreensível, diverge naturalmente da espontânea formação de uma corrente de opinião tendente à restituição do poder do desterrado.

No tempo da permanência na Terceira, o comportamento do soberano manifesta claros indícios da insanidade que justifica a crise política de 1667. De facto, os esforços oficiais para o melhoramento do quotidiano de D. Afonso VI, que motivam a abertura de caminhos e veredas até aos mais aprazíveis promontórios do Monte Brasil, por pouco tempo despertam a curiosidade do rei, pois prefere quase sempre o refúgio da residência, vítima da incapacidade física e da instabilidade psíquica que lhe martirizam a existência. Na verdade, a ingenuidade extrema e a fúria repentina patenteiam uma variedade de excessos, que resulta em manifestações de enfermidade, por vezes merecedoras de particular cuidado.

Os indícios de agitação social e política individualizam o exílio de D. Afonso VI na ilha Terceira. De início, o indecoroso comportamento do séquito do rei gera uma permanente ambiência de anarquia e conflituosidade. Com efeito, os servidores depreciam em público a imagem do monarca, que por vezes amargamente pranteia a ousadia, e ainda constituem bandos desavindos, que desafiam a autoridade do provedor da casa régia, movendo a intervenção da corte. De seguida, advém um antagonismo quase constante entre Manuel Nunes Leitão e muitos naturais, onde a insinuação de despeito do monarca possui por vindicta a acusação de infidelidade a D. Pedro. Além disso, logo a partir de 1670, as notícias e sobretudo os boatos, que na Terceira aludem à enfermidade e às rebeliões contra o regente e em Lisboa asseguram o desígnio e até a libertação do rei, geram um clima de grande instabilidade. Aliás, na perspectiva da ordem estabelecida, a preocupação ainda acresce, quando Manuel Nunes Leitão, já provido no lugar de governador do castelo de S. João Baptista, notifica oficialmente a regência do propósito dos terceirenses de restauração do reinado de D. Afonso VI, que para a consecução de semelhante aleivosia conservam a fortaleza sitiada. Esta incompreensível declaração, eventualmente movida por uma previdência doentia, que desde cedo persiste no afastamento do soberano do convívio dos populares, move o gabinete de Lisboa ao envio imediato de uma frota aos Açores, comandada pelo general Pedro Jacques de Magalhães, que intenta o retorno de D. Afonso VI ao Reino, sob o receio do levantamento e da resistência dos insulares. À chegada a Angra, por meados de Agosto de 1674, apesar do reconhecimento de uma situação de tranquilidade sociopolítica, as denúncias de Manuel Nunes Leitão sempre motivam a abertura de uma devassa, que determina a prisão de civis e eclesiásticos na Terceira e inclusivamente na Graciosa. Após deportação para Lisboa, o julgamento absolve a generalidade dos réus, demonstrando à saciedade a falta de fundamento das queixas contra os locais, insistentemente repetidas pelo comandante da fortaleza.

No tempo do desterro de D. Afonso VI na ilha Terceira, as suspeitas de intriga superam muito a realidade dos factos. Com efeito, reconhecemos poucas manifestações de contestação política. Em primeiro lugar, logo em 1670, surge a crença na restituição dos direitos de D. Afonso VI, alimentada por alguns criados do rei, na sequência da divulgação de notícias sobre uma doença do regente D. Pedro. Depois, no termo de 1673, regista-se a distribuição de propaganda em Angra contra «grandes» do Reino. Finalmente, já em 1674, avulta o intento dos conjurados de Lisboa de estabelecimento de contacto com o virtual partido afonsino terceirense. Além disto, notamos apenas a acção do alfaiate Lázaro Fernandes, um convicto sebastianista, que eleva o monarca deposto à dignidade de santo fundador do Quinto Império, suscitando algum alvoroço popular. No entanto, a ousadia vale-lhe uma ordem de prisão, seguida de degredo para o Brasil, após o julgamento do caso.

No cumprimento do desígnio do regente D. Pedro, que intenta o reforço da vigilância do desterrado, D. Afonso VI deixa o castelo de S. João Baptista em 24 de Agosto de 1674 e, depois de um tempo de permanência a bordo da frota ainda fundeada na baía de Angra, ruma ao Reino a 30 do mesmo mês, atingindo a enseada de Cascais no dia 20 de Setembro. De imediato, segue com o respectivo séquito para o palácio de Sintra, onde lhe fixam residência, aí falecendo em Agosto de 1683.

A Fénix Angrence do P.e Manuel Luís Maldonado constitui a melhor fonte para o estudo do desterro de D. Afonso VI no castelo de S. João Baptista. De facto, à data do desembarque do monarca em Angra, o autor contava 24 anos de idade, pelo que segue atentamente a sequência dos factos, precisamente quando ensaia a lide de cronista. Assim, os relatos posteriores seguem a descrição seiscentista, avultando o testemunho de F. Ferreira Drummond, que enaltece a narração de Maldonado, apesar da insistente propensão de ilibar os angrenses da suspeita de conluio com o rei contra o regente D. Pedro. Nestas circunstâncias, a investigação documental ainda corresponde à via de melhor esclarecimento desta problemática, considerando sobretudo a necessidade de rigorosa avaliação do incerto estado de agitação social, coincidente com o exílio do soberano. Avelino de Freitas de Meneses (Dez.1997)