Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Nemésio, Vitorino (Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva)

[N. Praia da Vitória, 19.12.1901 ? m. Lisboa, 20.2.1978] Foi uma das figuras mais representativas da Literatura e da Cultura Portuguesas do século XX, pela qualidade literária da sua obra e pela influência do seu magistério universitário e da sua personalidade.

Poeta, contista, romancista, cronista, ensaísta, conferencista, colaborador assíduo de revistas e jornais, comunicador de rádio e televisão, Nemésio foi Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa, onde leccionou várias cadeiras (Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, História da Cultura Portuguesa). Fez escola primária na Praia da Vitória, o liceu em Angra do Heroísmo e estudou nas Universidades de Coimbra (onde chegou a cursar Direito) e de Lisboa. Ainda adolescente e aluno do Liceu da Horta um ano (devido a comportamento menos regular em Angra?), a cidade faialense e o seu enquadramento paisagístico e social inspiraram-lhe referências fundamentais para o seu romance Mau Tempo no Canal (1944), que Vasco Graça Moura chega a considerar, ao lado de Amor de Perdição, de Camilo, e de Os Maias, de Eça de Queirós, uma das três obras primas do romance português (v. Prefácio à tradução francesa Gros Temps sur L?Archipel, La Difference, 1988).

Foi jornalista em Lisboa, no começo da sua carreira, professor no estrangeiro (Bruxelas, Montpellier, Bahia). A sua experiência cultural europeia valeu-lhe, em 1974, o Prémio Montaigne.

A sua obra e a sua vida apresentam profundas marcas das vivências literárias, sociais, científicas e bélicas do século XX. Assistiu às duas grandes guerras, a segunda das quais transformaria a sua ilha Terceira num porta-aviões (Base das Lajes). Essas transformações e aspectos do mundo da sua infância emergem das páginas de Corsário das Ilhas (1956), livro de crónica de viagens indispensável para conhecer bem os Açores e o homem Nemésio.

A infância e a adolescência decorreram no meio de uma natureza insular condicionante: clima húmido, lava seca, vacas, paisagens agrícolas (terra que «cheira a lava e a pelo de boi ...»), beira-mar, uma vila piscatória e uma sociedade rural patriarcal, gentes que vivem ou da pesca ou da criação de gado, ou de ambas as coisas. A vinda para o liceu de Angra abriu-lhe portas para maior liberdade e para um grande mundo de conflitos sentimentais e ideológicos (sentimentos, amores de adolescentes e iniciações anarquistas no romance Varanda de Pilatos, 1927). A sua ilha natal será presença afectiva perene, espécie de medida de todas as coisas, fonte constante de alusões, metáforas, ensinamentos, paralelos e «correspondências», quando visitava outras e distantes paragens, como as do Brasil.

Em 1916 (tem quinze anos?) publica o livro de poemas Canto Matinal (quisera chamar-lhe Canto Vesperal?!); era então um jovem aluno do liceu de Angra e começa o caminho de uma das mais importantes facetas de escritor: poeta; e poeta é, de facto, um seu lado que muito sobrevalorizava, como confessa na sua «Última lição» (1971) e em programa televisivo dos anos 70 que tinha o nome de «Se bem me lembro».

Em 1922 publica em Coimbra o poema Nave Etérea (realizara-se a famosa travessia aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral), mas seria em 1924, com a publicação de Paço do Milhafre (Prefácio de Afonso Lopes Vieira) que entraria definitivamente na criação de uma literatura referenciada às ilhas e à fala das suas gentes. Recordações e efabulações, ainda relativamente incipientes mas já marcantes, enchem o romance Varanda de Pilatos (1927), que embora demasiado «próximo» dos acontecimentos, é obra a não perder, com a leitura conduzida pelo prefácio de José Martins Garcia (edição da Imprensa Nacional/Casa da Moeda), primeiro «biógrafo» de Nemésio.

No mundo da poesia, decisivo haveria de ser o surgimento de La Voyelle Promise (1935), criação poética «por dentro» da língua francesa (que dominava excelentemente), carregada de vivências insulares. De assinalar a sua ligação ao movimento da Presença (1927), tendo em 1937 criado a Revista de Portugal, ano em que também publicou as novelas A Casa Fechada. Como poeta foi, porém, sempre muito independente («surrealista sem surrealismo»?), pois a sua forte individualidade rejeitava escolas e até as ignorava. O Bicho Harmonioso (1938) é outro livro de referência na trajectória poética do autor (destaquem-se poemas como «O Paço do Milhafre», «A Concha», «O Canário de Oiro»). Alguns livros têm títulos enigmáticos: Eu, comovido a Oeste (1940), em que Oeste é o Oeste do mar atlântico, em cujo centro estão as viagens do poeta e a «força» das suas raízes míticas; em Nem Toda a Noite a Vida (1953) vida e noite têm uma alternância de sentido penitencial introspectivo e dos dois o autor diz que são «volumes de versos que estão cheios de mim e portanto do mar e dos Açores». Mas é em Festa Redonda, Décimas e Cantigas de Terreiro oferecidas ao Povo da Ilha Terceira [?] (1950) que melhor evoca, em poesia ao gosto popular, um mundo de referências, linguagens, cultos e costumes; contem evocações tão importantes que confessa mesmo (em dáctilo escrito contido no Espólio da Biblioteca Nacional (E11, cx. 58) que «é o [seu] livro mais fundamente autobiográfico. Lá met[eu] infância e adolescência e é para [ele] como ouvir o mar num búzio». O Pão e a Culpa (1955) é poesia religiosa, num sentido de aprofundamento bíblico e teológico e de consciência do barro humano. O Verbo e a Morte (1959) é portador de uma tónica filosófica (inclusive leituras de Heidegger), livro onde reside um dos mais belos poemas da insularidade, «Ilha ao longe». E Limite de Idade (1972) é o resultado de leituras de curiosidade científica (Biologia, Medicina, Física Nuclear), de consciência da sua doença e de jogos verbais com as linguagens das ciências: um caso raro de convergência de ciência e literatura onde se inserem preocupações existenciais, a «velha» saudade das ilhas e a «Ilha ao longe»? A preocupação da origem da vida na Terra provocou um dos mais significativos poemas, «Matéria Orgânica a Distância Astronómica». Paralelamente excogitava os problemas do seu tempo nas crónicas que dariam o livro Era do Átomo. Crise do Homem (1976). Uma nova fase de poesia erótica em fim de vida surgirá em Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga, dos anos 70, mas só publicado, em 2003 (Imprensa Nacional/Casa da Moeda, estudo de Luís Fagundes Duarte).

Os céus cinzentos de Bruxelas (onde era então leitor), fortes saudades das ilhas e a vontade de fazer um romance de certa extensão (como também a moda exigia) levaram-no a idear o célebre romance Mau Tempo no Canal. O título já vem em agenda de Nemésio aí por Dezembro de 1937. E em 17 de Janeiro de 1938 escreve a conhecida primeira página do romance, que virá a concluir em Fevereiro de 1944, ano da publicação. «Pareceu-me que fiz um romance das ilhas ? a nossa gente, a nossa lava, o nosso mar», como confessa em entrevista (Entrevista ao Correio dos Açores, Ponta Delgada, 27 de Agosto de 1944). Refere-se aos Açores, à Horta, ao Canal Pico-Faial-S. Jorge, também no capítulo final à Terceira, de 1917 a 1919, aos amores frustrados de João Garcia e Margarida Clark Dulmo, contrariados por profundos ódios familiares e diferenças sociais, acabando num casamento de acomodação. Cores, cheiros, luz, nuvens (em profusão caprichosa), a majestosa montanha do Pico, a pesca da baleia, o flagelo da peste, as navegações no porto cosmopolita da Horta, os conflitos sociais, a mesquinhez da intriga, a aristocracia decadente, a burguesia, a pobre gente das habitações rurais, os debates íntimos do sentimento e da razão, da desforra e do olvido, a luta pela vida e o orgulho disfarçado enchem esse romance. Nele também não falta a fala regional, em personagens como o criado Manuel Bana e principalmente o Ti Amaro, trancador de baleias, que andou pelos mares do Norte (o «Ariôche», Artic Ocean) e que preceitua que

 

pena-se muito nesses mares, mas aprende-se mais que nua esquiola [numa escola].

 

A fala é meio picarota meio terceirense, mas resulta como experiência realista de literatura valorizada pelo documento folclórico e antropológico. Era preciso documentar identitariamente essas ilhas ainda mal conhecidas, que um dos seus próximos livros, Corsário das Ilhas (1956), viria então fazer avultar como berço da sua infância e adolescência e paisagem humana de grande diversidade. Este livro de crónicas de viagem (1946 e 1955), que deve ser entendido como itinerário açoriano (corsário no sentido de «fazer o corso de»), é não só leitura indispensável sobre as ilhas atlânticas (Açores, Madeira, Canárias) como documento humano sobre o próprio autor, que se considera «filho pródigo» em visita de saudade à sua ilha. Este livro faz parte de uma «série», o «Jornal de Vitorino Nemésio», antecedido por Ondas Médias (1944), O Segredo de Ouro Preto (1954), depois seguido por Conhecimento de Poesia (1958), Viagens ao Pé da Porta (1967), Caatinga e Terra Caída. Viagens no Nordeste e no Amazonas (1968), Jornal do Observador (1971).

Renovando, por meio de crónicas sui generis, o próprio género da crónica, Nemésio «viaja» no espaço e no tempo, dentro e fora de si próprio, com alusões eruditas, referências inesperadas, vastíssimos conhecimentos de geografia física, geografia humana e história, por vezes em busca de «correspondências» entre o que vê pela primeira vez e o que conhece da sua terra ou da sua infância.

Clássico ficou o seu texto de 1932, intitulado «Açorianidade» (Revista Insula, 7-8, Agosto, incluído depois em Sob os signos de agora, 1932), destinado à comemoração do V centenário do descobrimento dos Açores. Foi daí que o termo Açorianidade partiu, com grande fortuna e expansão, cujo alcance Nemésio na altura não adivinhou. Com efeito, ele estava a falar da sua açorianidade ou «imaginação» do ser açoriano «que o desterro afina e exacerba»: isto é, o afastamento define ou aumenta o sentimento de pertença e ligação espiritual aos Açores. Mais uma versão da «saudade portuguesa», mas com alcance identitário regional e com aura política, sobretudo depois da criação do Governo próprio da Região (1976). Como escreveu em Corsário das Ilhas, «a natural preocupação por essas ilhas [?] por vários modos nele tende a resolver-se por escrito». Esses modos foram a poesia, o romance, o conto, a crónica, a conferência (como a que fez em Coimbra em 1928 sobre «O Açoriano e os Açores» e outra em Nice em 1940, «Le Mythe de M. Queimado»). Nos anos 70, com as vivências políticas anti-gonçalvistas e independentistas dos Açores (1975), Nemésio foi invocado como figura tutelar ou mesmo hipotética de Presidente de uns Açores independentes. «Até que me passe a zanga», como deixa dito em poemas cripto-separatistas de Sapateia Açoriana (1976). A zanga havia de moderar-se ou passar (as condições políticas, de resto, modificaram-se). Nemésio, por sua expressa vontade, repousa no cemitério do Tovim, em Coimbra, cidade onde estudou e tinha uma casa («Casaréus»).

Da sua ficção, de que faz também parte o conjunto de contos O Mistério do Paço do Milhafre (1949), recuperando anteriores narrativas de Paço do Milhafre e acrescentando outras como o inesquecível conto «Quatro Prisões Debaixo de Armas»; poderíamos ainda referir o inacabado romance O Cárcere (1976, 1.º capítulo no Diário de Notícias, 30 de Março de 1978, postumamente), no qual emerge ainda e sempre o mundo da sua ilha e da sua infância e o sentimento de ser ilhéu: «Nunca cheguei a saber se o cárcere era de pedra ou era de gente. Talvez de pedra com gente dentro, talvez de gente feita de pedra».

Nemésio foi também uma figura de grande relevo universitário. A sua tese de doutoramento A Mocidade de Herculano até à volta do Exílio (2 vols., 1934) é uma referência indispensável para os estudiosos daquele autor e do liberalismo português (em Portugal e no exílio). Tem outros estudos sobre Herculano, sobre a Rainha Santa Isabel (Isabel de Aragão, 1936), sobre o Infante D. Henrique (Vida e Obra do Infante D. Henrique, 1960), sobre Gomes Leal, Gil Vicente, Moniz Barreto, Afonso Duarte, o Romantismo Português nas suas relações com a cultura francesa, Cecília Meireles, problemas das relações luso-brasileiras, questões teóricas de literatura, num larguíssimo leque de interesses, participações e convites de um grande homem das Letras e da vida universitária portuguesa, como se vê pelo seu currículo e vasta bibliografia. Foi tradutor, conferencista, fez palestras na Rádio e na Televisão. Foi um grande conversador e assumiu-se como melómano, ensaiando tocar modas regionais à viola.

A projecção da sua obra e da sua personalidade permite concluir que é um dos escritores mais significativos do século XX, estudado no seu país e no estrangeiro, em numerosas teses de mestrado e doutoramento. Na Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, existe um Centro de Estudos que lhe é dedicado (bibliografia, iconografia, investigação), o SIEN (Seminário Internacional de Estudos Nemesianos). A cidade da Praia da Vitória desenvolve um projecto respeitante à «Casa de Vitorino Nemésio». A Imprensa Nacional-Casa da Moeda tem publicado as Obras Completas de Vitorino Nemésio.

António M. B. Machado Pires

Bibliografia Essencial

Aquando da recepção do Prémio Montaigne, em l974, a Editora Bertrand fez publicar uma colectânea sobre Nemésio, Críticas sobre Vitorino Nemésio, que inclui também a sua magistral «Última lição», publicada pela primeira vez na Miscelanea de Estudos em honra do Prof. Vitorino Nemésio, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1971. As Obras Completas de Vitorino Nemésio estão a ser reeditadas pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

A.A.V.V. (1998), Vitorino Nemésio ? Vinte Anos Depois. Lisboa, Edições Cosmos e Seminário Internacional de Estudos Nemesianos [Actas do 1.º Congresso Internacional de Estudos Nemesianos]. A.A.V.V. (2003), Nemésio, Nemésios ? Um Saber Plural. Lisboa, Edições Colibri [Actas do Seminário Nemésio 100 Anos]. Cook, C. S. (2006), O Menino escreve. Infância e Adolescência no universo nemesiano. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Garcia, J. M. (1988), Vitorino Nemésio ? à luz do Verbo. Lisboa, Vega. Gouveia, M. M. M. (1987), Vitorino Nemésio ? Estudo e Antologia. Lisboa, ICALP, «Col. Identidade» [Contém também uma antologia de estudos críticos]. Mourão-Ferreira, D. (1987), O Essencial sobre Vitorino Nemésio. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, «Col. O Essencial». Pires, A. M. B. M. (1998), Vitorino Nemésio Rouxinol e Mocho. Praia da Vitória, Câmara Municipal da Praia da Vitória. Silva, H. G. (1985), Açorianidade na Prosa de Vitorino Nemésio: realidade, poesia e mito. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Secretaria Regional da Educação e Cultura. Valdemar, A. (2002) Vitorino Nemésio. Sem Limite de Idade. Lisboa, CTT-Correios de Portugal.

Revistas que consagraram recentemente alguns artigos significativos: Revista Atlântida, vol. XLVI, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 2001 [Centenário de nascimento. Textos de António M. B. Machado Pires, Fátima Freitas Morna, Fernando Cristóvão, Manuel Nemésio, Margarida Maia Gouveia, Urbano Bettencourt]. Revista Insulana, n.º L (n.º 1) MCMXCIV, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994 [Número Comemorativo dos 50 anos de Mau Tempo no Canal. Artigos de Adelaide Baptista, António Machado Pires, Diogo Pires Aurélio, Helena Mateus Silva, José Martins Garcia, Manuel Urbano Bettencourt, Maria Margarida Maia Gouveia, Paulo Meneses, Rosa Simas].