Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Mesquita, Roberto de

[N. Santa Cruz das Flores, 19.6.1871 ? m. ibid., 31.12.1923] Poeta.

Se na obra de muitos escritores se sente o desfasamento entre o tempo e o mundo que lhes é dado viver e as características pessoais, Roberto Mesquita foi um poeta que nasceu no ambiente e na época literária certos. Com efeito, características pessoais, culturais e psicológicas, fazem que na poesia de Roberto Mesquita se interpenetrem, com aguda sensibilidade e rara felicidade, as circunstâncias da vida, e o espírito e temas do decadentismo e simbolismo da época literária.

Depois de ter feito a escola primária em Santa Cruz das Flores, o segundo filho de António Fernandes de Mesquita Henriques e de D. Maria Amélia de Freitas Henriques, Roberto Mesquita, segue os passos de seu irmão Carlos, um ano mais velho, e, como ele, depois de uma primeira tentativa frustrada em Angra do Heroísmo, faz estudos liceais na Horta. Vem depois a ingressar na carreira da Fazenda Pública, enquanto seu irmão, dado também, ainda que com menos felicidade, à criação literária, prossegue estudos em Coimbra.

Em 1890, Roberto de Mesquita, que, na companhia deste irmão frequentara já algumas tertúlias literárias e recebera estímulo de professores na Horta, faz a sua estreia literária, publicando n?O Amigo do Povo de Santa Cruz das Flores um soneto sob o pseudónimo Raul Montanha. A partir daí, vai dando a conhecer dispersamente os seus poemas: e se publica a maioria em páginas da imprensa regional (O Açoriano, A Ilha das Flores, Revista Faialense, O Arauto, A Actualidade), outros vêem a letra de forma em algumas das páginas nacionais de maior representatividade da época, como sejam a Ave Azul ou Os Novos, a revista que deu expressão mais significativa à geração simbolista portuguesa.

Roberto de Mesquita, que era leitor assíduo da poesia portuguesa e francesa (marcam­-no sobretudo Verlaine e Rimbaud, mas também Baudelaire está presente em muitos dos seus poemas), nunca deixou de ter informação da vida literária do continente e, aquando da única viagem que realizou para fora dos Açores (1904), encontrou­-se com Eugénio de Castro e Manuel da Silva Gaio. A estes contactos não era estranha a intervenção de Carlos de Mesquita, homem culto e de fina intuição crítica, que foi professor no liceu de Viseu e, depois, na Universidade de Coimbra (morre em 1916).

A edição em livro dos seus poemas foi projecto acalentado por Roberto Mesquita, que o organizou e colocou sob a égide expressa de Antero, intitulando­-o, a partir do verso anteriano «almas irmãs da minha, almas cativas», Almas Cativas. Morreu no entanto sem realizar o projecto, e só em 1931, por iniciativa familiar, apoiada por Marcelino Lima, a obra surgiu em Famalicão. Já em 1989, Pedro da Silveira leva a cabo nova edição, enriquecida com poemas dispersos e o registo de variantes, e prefaciada por Jacinto do Prado Coelho. Por outro lado, no final da década de 30, Vitorino Nemésio considerou Roberto Mesquita «o primeiro poeta que exprime alguma coisa de essencial na condição humana tal como ela se apresenta na ilhas dos Açores», encontrando nos seus poemas a expressão perfeita das características que reúne no seu conceito de açorianidade. Pôde assim sublinhar no livro do florense «a melhor imagem da dispersão e sonolência da vida nos Açores, um perfil difuso e abúlico da açorianidade».

Pertencem a Almas Cativas alguns dos mais belos e expressivos poemas marítimos da poesia portuguesa. Neles, o peso opressivo da solidão concentra­-se na sugestão de um ambiente fechado, de céus cinzentos e pesados, que se estende ao poeta de uma forma calma e difusa. As casas ancestrais e as ruínas humanizam­-se, a noite, pelo seu «místico cismar», impõe um «terror sagrado» enquanto o luar transfigura a natureza, enfim, o poeta descobre a «alma de tudo a orar» e vê a sua sensibilidade exacerbada pelo pôr­-do­-sol, pelo vento agreste, por ruínas que se desenham em ambientes de decadência.

Invadido por um vago misticismo, que ultrapassa em muito o spleen evocado em algumas composições, o poeta irmana­-se com as «Almas cativas» do universo e toma para si a missão de revelar o sentido da natureza e das coisas, a sua «alma». Ao fazê­-lo, tem consciência de ser superior aos outros homens, confinados às aparências simples do universo; mas, «poeta maldito», no seu dom encontra também o seu infortúnio. Como Filodemo, o pastor a quem as asas impedem o amor, sabe que a sua condição de poeta o impede de desfrutar as alegrias simples e ingénuas dos homens comuns.

Precisamente porque poeta, sabe­-se superior aos seus contemporâneos; e a sua alma «omnicoeva», «alma fim de raça, / intransigente com o Hoje estiolante», sente o apelo do Outrora. Interessam­-no então os ambientes fantasiados de um passado que, festivo e irreal, parece suspender­-se nos objectos arruinados que os animaram e que se tornaram símbolos, ou as efabulações de ambiência histórica ou bíblica, tão do agrado da época literária.

No entanto, não é um apelo ao passado que perpassa no olhar que confunde o tempo e o espaço na consideração da paisagem distante: nele manifesta­-se o mesmo estado anímico que se exterioriza na contemplação da natureza e que percorre os versos de Roberto Mesquita.

Quando o mar e o horizonte fechado da ilha são evocados, não são no entanto, a causa directa do tédio e do sentimento de tristeza vaga, da «viuvez desamparada» que une o poeta e a natureza. A noite, o vento aflitivo do nordeste ou o «macerado fechar de tarde» outonal estimulam certamente a meditação, mas os seus poemas não se detêm na simples busca de uma compreensão psicológica para o seu estado. É antes um movimento religioso, um movimento puro de abolição da separação entre os mundos humano e físico, que encontra a sua expressão na Poesia.

Ao mesmo tempo que se isola dos outros homens, o poeta irmana­-se com o mundo. A um vós/eu que condensa a oposição com aqueles que na aparência lhe são semelhantes, sucede­-se um vós/nós, em que o poeta sente a proximidade da «alma das coisas». E como que a mostrar que a comunhão entre o mundo e o poeta é total, o ritmo das descrições da paisagem, em que soam tanto uma cultura e uma sensibilidade literariamente modeladas, como a melancolia da açorianidade, não se quebra quando se manifesta a perplexidade: «Paisagem vesperal que palpitante espia / a estrela do pastor, que já no azul flutua? / A saudade sem causa, a vaga nostalgia / Que enche como um perfume este apagar do dia, / Gerou­-se na minha alma ou acordou na tua?».

A inquietação renasce continuamente de uma saudade sem alvo definido, nem causa ocasional. O poeta procura, em vão, compreender pela análise a sua natureza, que não é simplesmente psicológica: ela é, afinal, fruto da saudade do ideal («Minha alma, donde nasce a mágoa que te invade? / Que éden sentes perdido? / Oh! esta cheia poderosa de saudade / Sem alvo definido!»). A cada passo que o poeta dá à procura das promessas de absoluto inscritas no horizonte, o horizonte alarga­-se, a sua linha foge para o mais longínquo. A realização de qualquer sonho redunda na desilusão, superável apenas no fantasiar de novo Além.

Reiterado com melancolia decadentista, este estado anímico cava­-se sobretudo na inquieta certeza do desencanto final do poeta que não pode deixar de procurar «A beleza essencial, para sempre vedada / À nossa alma que geme à terra agrilhoada».

Em alguns momentos, assola­-o a solidão da criatura face ao Criador: pressentindo embora a Sua presença na muda imensidão do mundo, não consegue explicação para a «fria mudez» que responde às súplicas dos homens, «abandonados num caminho incerto». Mas afirma a sua crença num sentido que não cessa de procurar, para o exílio terreno que Deus inflige aos seus «filhinhos», mesmo se lhe pesa ter de aceitar «a Vida fragmentada/ Em vidas dum momento».

E por isso, apesar de os seus versos não atingirem sistematicamente a fundura filosófica, a saudade que expressam não se confina à emotividade. É antes a saudade de uma unidade primordial que o poeta procura decifrar na natureza e nas coisas, buscando­-lhes uma alma e um sentido que não se oferecem nem à Ciência nem ao homem comum.

Roberto de Mesquita impõe o reinvestimento simbólico das imagens do viver ilhéu, do isolamento e do «céu fechado», ou do fantasiar de «belas regiões perdidas / na extensão do mar» que animam alguns dos mais belos poemas de Almas Cativas. E esse entendimento impõe­-se de tal forma que se torna impossível dar à análise introspectiva e ao sentimento da natureza outro significado que não o da universalidade. Mesmo a originalidade suave de um estilo que se apoia em recursos literariamente típicos na época, mas surpreende o leitor pela tensão e poder sugestivo do ritmo ou da aproximação de realidades díspares, de sinestesias ou metáforas inesperadas, vem acentuar o sentimento de indefinição, de vago, e propicia a oscilação dramática entre o particular e o universal que caracteriza uma obra que, sem ser muito extensa, dá a Roberto de Mesquita lugar entre os grandes poetas do simbolismo. Maria do Céu Fraga

Bibl. Na edição de Almas Cativas de que é responsável (Lisboa, Ática, 1989), Pedro da Silveira apresenta, a par de uma cronologia do poeta, uma extensa bibliografia com os títulos publicados até à época. Entre esses títulos, justo é realçar:

Vitorino Nemésio, «O Poeta e o isolamento: Roberto de Mesquita», in Revista de Portugal, nº6, 1939 (recentemente republicado em nova edição de Conhecimento de Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997); Jacinto do Prado Coelho, «Pensamento e estesia em Roberto Mesquita»; Problemática da História Literária, Lisboa, Ática, 1961, pp. 205­-209.

Entretanto, acrescentem­-se: José Carlos Seabra Pereira, Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1975, José Martins Garcia, O cárcere e o infinito: sobre a poesia de Roberto de Mesquita, sep. de Arquipélago­Línguas e Literaturas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986; Luís de Miranda Rocha, Para uma Introdução a Roberto Mesquita, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981.