Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Camões, José António (Pe.)

[N. ilha das Flores, Dezembro 1777 ? m. Ponta Delgada, Flores, 18.1.1827] Presbítero, professor e também poeta, José António Camões ? e não António José Camões, como o têm repetido vários autores ? recebeu o baptismo, com 2 ou 3 dias de vida, na igreja de Nossa Senhora dos Remédios, na Fajãzinha, a 13.12.1777, sem que se lhe conhecessem os pais. Tinha sido exposto, na véspera, no lugar da Fajã Grande, pelo que a Igreja registou-o como «filho de pais inconhecidos», ainda que se suponha fosse filho de um tal frei Manuel de S. Domingos, clérigo franciscano do convento de S. Boaventura de Santa Cruz das Flores, e de mãe nascida na ilha do Corvo. Como não tivesse nome de família, adoptou, já na adolescência, o apelido Camões, em homenagem ao autor d?Os Lusíadas.

São escassas as informações sobre os seus primeiros anos de vida, a menos que se aceite por autobiográfico o que ele próprio escreveu, antes de 1813, mas sendo já ouvidor eclesiástico das Flores e do Corvo, no Testamento de D. Burro, Pai dos Asnos. De concreto, sabe-se que fez grande parte dos seus estudos em Santa Cruz, inicialmente com os frades do convento de S. Boaventura e, a partir de 1792, possivelmente, também, com António José Álvares, o primeiro professor régio de Gramática Latina na ilha, tendo concluído a sua formação em Angra. Já dava «normas e borrões» para processos em 1796, no ano seguinte era professor particular de Latim em Santa Cruz e, até à sua ordenação, foi ainda assessor de dois juízes pela lei e advogado nas Flores.

Em 1.9.1800, obteve, do Tribunal Eclesiástico de Angra, sentença de genere, que lhe permitia aceder ao estado eclesiástico, ao corrigir a inabilitação advinda da «malícia de seus pais», tendo assegurado, ao longo de 1802, a doação de 240.000 réis para o seu património, metade dos quais oferecidos pelo sargento-mor João António de Freitas Henriques, o homem mais rico e poderoso da ilha, e sua mulher, D. Maria Vitória de Almeida. A sua ordenação sacerdotal data de 20.10.1804. Até final desse ano, recebe ainda provimento de pregador e confessor geral, e, por provisão do capitão-general, conde de S. Lourenço, é nomeado professor régio de Gramática Latina na cadeira da vila de Santa Cruz das Flores.

De regresso à ilha-natal, na primavera de 1805, começa, então, a exercer o cargo de professor, até que, dispensadas pelo bispo certas formalidades, foi nomeado, a 24.6.1807, vigário da paróquia de S. Pedro da freguesia de Ponta Delgada, em substituição do padre Domingos Bernardo da Silveira, que atingira o limite de idade. Embora contrafeito, deixa o cargo de professor régio na vila de Santa Cruz, mas continua, mesmo assim, a assistir aos alunos que a fama, já entretanto alcançada como professor, fizera arrastar consigo até à recôndita freguesia de Ponta Delgada. Desses seus discípulos, viriam mesmo a ser ordenados, mais tarde, cinco presbíteros, dois diáconos e um subdiácono, além dos muitos jovens, oriundos das Flores, do Corvo e até do Faial, a quem ensinou com grande utilidade pública.

Num curto espaço de tempo, o padre José António Camões é sucessivamente nomeado procurador da Mitra (1808), ouvidor eclesiástico nas ilhas das Flores e Corvo (em 1810, após eleição), examinador dos eclesiásticos daquelas duas ilhas (1812) e prioste da ilha do Corvo (1813). Ao tentar, enquanto ouvidor, morigerar o clero local, o padre Camões suscita, todavia, de parte dos atingidos, uma guerra sem quartel, à qual conseguiu resistir enquanto foi vivo o bispo diocesano, também ele apostado em corrigir os defeitos que encontrara na clerezia. Ainda antes de 1813, escreve ? ele próprio o irá confessar em 1815, na Elegia que fez ao secretário da Capitania: «Uma simples, inocente alegoria. / Era o tal testamento qu?eu só fiz, / Para desterro da minha hipocondria» ? o Testamento de D. Burro, Pai dos Asnos. Nessa sátira, em que descreve alguns eventos que se crê serem da sua infância e juventude, o padre Camões procede a um verdadeiro ajuste de contas com aqueles que, enquanto pequeno, o haviam discriminado e maltratado, enxovalhando vários dos nomes mais sonantes da sociedade local de então.

Morto o bispo D. José Pegado de Azevedo, em 1812, o padre José António Camões, malgrado ter sido ainda confirmado, em Setembro desse ano, no cargo de ouvidor eclesiástico pelo provisor do Bispado, não tarda a cair em desgraça, de tal sorte que, em Maio de 1813, é destituído daquelas funções e acusado de várias irregularidades. Um mês depois, em requerimento ao provisor, pede justiça, defende-se das acusações que lhe são feitas e apresenta abonações a seu favor de 11 dos outros 17 sacerdotes da ouvidoria e ainda dos dois escrivães e meirinho eclesiásticos. Em desagravo pelo facto de alguns dos colegas terem emudecido, «sem que uma só palavra quisessem atestar-lhe», escreve então, possivelmente no segundo semestre de 1813, a sátira Os Pecados Mortais ? Diálogo entre Um Marido e Sua Mulher, no Qual Fazem Uma Justa Paridade dos Sete Pecados Mortais com os Sete Clérigos Que não Querem Para Ouvidor Eclesiástico Destas Duas Ilhas Flores e Corvo ao Padre José António de Camões.

Em Junho de 1814, José António Camões é mandado seguir para Angra, logo «no primeiro navio em direitura para a ilha Terceira», desta feita para responder à «Ilustríssima Mesa Capitular sobre a atrocíssima injúria de simonia, subornada e peitada». Munido de requerimentos de parte do clero e dos fregueses de S. Pedro de Ponta Delgada, o primeiro a reclamar a inocência e bom comportamento do arguido e o segundo a pedir a restituição do pároco ao seio daquele rebanho de almas, o padre Camões parte em Outubro de 1814 para a Terceira, onde, a 20 de Fevereiro do ano seguinte, na sequência de notável defesa, obtém sentença de absolvição. A 6.3.1815 correu mesmo folha no Juízo Eclesiástico, na qual os escrivães atestaram que «nada» ali constava contra o padre Camões.

Apesar da absolvição, o padre José António Camões jamais viria a ser reintegrado como vigário da paróquia de S. Pedro de Ponta Delgada, como nunca logrou, também, obter a «satisfação pública» que exigira, e que se traduzia no desejo de ver «publicamente punido seu falso acusador ou acusadores», tanto mais que não tinha meios pecuniários para sustentar esse pleito. A 26.8.1815 obteve, todavia, por despacho do capitão-general Aires Pinto de Sousa, provimento de professor régio na cadeira de Gramática Latina de Santa Cruz das Flores, onde ainda leccionava em Março de 1821, se bem que agora já com menos agrado da câmara municipal, quer por ter faltado «muitas vezes», quer por ter mostrado «muito mau carácter», sobretudo nos «dois anos em que serviu de assessor de dois juízes pela lei e um em advogado». Entre 1821 e 1823, escreveu os três Sonetos que se lhe conhecem e concluiu também o seu Relatório das cousas mais notáveis que havião nas ilhas das Flores e Corvo, no qual descreve com grande pormenor a toponímia da ilha, apresenta algumas estatísticas e traça um muito vivo retrato social da sua época, «dando ênfase especial à ignorância e prepotência do clero e às condições de grande miséria em que vivia a maioria dos florentinos».

Morreu com apenas 49 anos de idade, mas já cansado, derrotado e abandonado, na freguesia de Ponta Delgada, onde vivera os últimos anos de vida, ali auxiliando ? sabemos que baptizou na paróquia, com licença do vigário, em 1825 e 1826 ? o padre Manuel Luís da Silveira. Não fez disposição alguma, «por ter algumas dívidas sabidas e os trastes não darem para pagamento delas», e ao ofício de corpo presente que lhe fizeram na igreja de S. Pedro, em cujo cruzeiro está sepultado, já somente assistiram o colégio daquela paroquial e quatro religiosos do convento franciscano de S. Boaventura.

Francisco Gomes (Abr.2001)

Obras. (1865), Testamento de D. Burro, Pai dos Asnos. Boston, Typ. Dalkin & Metcalf [2ª ed. 1983, Lisboa, Edições & etc., com nota introdutória de Aníbal Fernandes]. (1873), Soneto de louvor aos faialenese por se desligarem do governo de Angra. Soneto de regozijo pela separação do governo do Faial do de Angra. Soneto de louvor pela integração das ilhas das Flores e Corvo no governo do Faial. [Publicados no Jorgense, n.º 40, de 1 de Junho de 1873, pelo dr. João Teixeira Soares, e republicados em Avellar, J. C. S. (1990) Ilha de São Jorge (Açores) Apontamentos para a sua História. Velas, Câmara Municipal de Velas, fac-símile da ed. de 1902: 31-34]. (1883), Os Pecados Mortais. Diálogo Entre um Marido e sua Mulher no Qual Fazem uma Justa Paridade dos Sete Pecados Mortais com os Sete Clérigos que não Querem para Ouvidor Eclesiástico destas Duas Ilhas Flores e Corvo ao Padre José António Camões. Lisboa. (1981), Elegia escrita ao Secretário do Capitão General. [Apenas se conhecem alguns tercetos, insertos em Drumond, F. F. (1981), Anais da Ilha Terceira (fac-símile da ed. de 1859). Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, III: 255-257]. (1981), Soneto de repúdio à contra-revolução ocorrida em Angra a 3 de Agosto de 1823. [Inserto em Drumond, F. F. (1981) Anais da Ilha Terceira (fac-símile da ed. de 1864). Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, IV: 64]. (1990), Relatório das Cousas mais Notáveis que Havião nas Ilhas Flores e Corvo, por um Indivíduo que Nelas se Achava, e Enviado ao Capitão General. [Inserto em Leite, J. G. R. (1990), Um retrato da Ilha das Flores no final do antigo regime - a Memória do padre José António Camões. Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo, XLVIII: 476-506].

 

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