Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Brandão, Raul

(R. Germano B.) [N. Foz do Douro, 12.3.1867 - m. Lisboa, 5.12.1930] A luz e o céu da Foz ficaram-lhe sempre na memória; a vida dos pescadores (de quem é descendente) deu-lhe uma compreensão especial para interpretar os perigos do mar e o risco da existência humana, em geral. Os Pescadores ostentam uma dedicatória «à memória de meu avô, morto no mar».

Frequentou um colégio no Porto («mundo atroz e brutal» que o marcaria para toda a vida, favorecendo já desde a infância a «fuga» para o sonho...); terminado o liceu, matriculou-se no Curso Superior de Letras (breve passagem em 1888), que trocou pela Escola do Exército em 1891, aos 24 anos. Sem convicção pela vida militar, da qual se reformou cedo, a sua passagem por Guimarães deixou os «vestígios» do castelo nas muralhas graníticas e bolorentas de Húmus (1917) e o seu horror às casernas fica bem claro ao dizer (nas páginas memorialísticas de Vale de Josafat) que «o inferno deve ser um retrete de soldado em ponto maior»... Colaborou em jornais e revistas, tais como Correio da Manhã, Revista de Hoje, o Dia, República, A Águia, Seara Nova. A sua obra não é muito vasta, mas é muito significativa, no que toca aos géneros literários e às questões que põe sobre o Homem perante Deus, a dor e a sua própria interioridade.

Os Pescadores (1923) e As Ilhas Desconhecidas (1926) são dois livros de paisagens e de viagens que revelam o R. Brandão admirador da luz e da cor e um impressionista confesso. No primeiro, R. B. percorre a costa portuguesa - extasiando-se com o pôr do Sol, sem esquecer notar o isolamento do faroleiro das Berlengas, a condição e disponibilidade dos pescadores, em risco de vida para ganharem o sustento. Aos 50 anos, «pintor de quadros», «quadrinhos ao ar livre», a um ar livre onde a luz lhe surge como um absoluto e o azul o domina: «este azul que nos envolve e penetra e que desaba em torrentes», «a imensa vida azul» (?Caparica?, Janeiro 1923), «O mundo é azul» (?Ida ao mar?, 5 de Setembro). E, além da cor, a luz define o mundo: «O mundo não existe?mundo é a luz» (Ibid.). Esta obsessão pela luz e por certa cor ? diríamos mesmo fotolatria e cromolataria ? evidencia um escritor impressionista muito peculiar (recebeu lições de pintura de Columbano ...), quer nas adjectivações referidas ao entardecer, aos pores de sol, à luz e à cor, mas também nas sinestesias, nas metáforas, nas orações nominais.

Em As Ilhas Desconhecidas, em resultado da «viagem dos intelectuais» às ilhas açorianas em 1924 (ia o jovem Vitorino Nemésio a bordo) R. Brandão continua de algum modo Os Pescadores, «diário» de impressões da terra portuguesa. As Ilhas Desconhecidas são notas tiradas na viagem aos Açores e à Madeira, de 8 de Junho a 29 de Agosto de 1924, com a habitual espontaneidade do escritor que regista as suas primeiras impressões.

Pode dizer-se sem exagero que este livro potencia e afina as qualidades de Brandão paisagista, porque, se n? Os Pescadores são notáveis e sui generis as notas sobre a luz e os seus infinitos cambiantes, a linguagem e a adjectivação da cor neste livro atingem uma originalidade definitivamente marcante. O Brandão d?Os Pescadores é o Brandão da luz; o Brandão d?As Ilhas Desconhecidas é o da cor. Se naquela obra os termos referentes à luz (e seus cambiantes) são mais frequentes, nesta, os termos respeitantes à cor (e seus cambiantes) são muito mais frequentes. O seu livro é, pois, um poema à luz e principalmente às cores insulares.

Nunca os Açores se viram tão surpreendidos em inesgotáveis mutações de cores, quase materializadas como seres vivos, que povoam as paisagens de mar, céu e terra no horizonte. Foi Brandão quem notou que o mais belo de uma ilha é avistar outra no horizonte ... Nas ilhas está-se «sempre a mudar de cenário». «Montanhas, gargantas profundas se abaixam gradualmente até ao mar (...) ? e com a névoa cria-se um panorama de sonho ? um panorama de luz sempre a rarefazer-se. O oceano ao longe não se distingue do céu pela bruma esbranquiçada» (?A Floresta Adormecida??Brandão refere-se às Flores). Ora é ainda na ilha das Flores que surpreende os cambiantes dos verdes, o «verde-azul e derretido nos fundos, o verde-escuro dos lagos de inhames, o verde-macio das relvas, o verde-negro das faias», confirmando o que o florentino Pedro da Silveira diz: que o verde dos Açores é feito de vários verdes...

A solidão e o sonho, sobretudo nessa ilha mais erma e distante do Corvo, volta-lhe ao coração e ao pensamento, não se esquecendo de que o homem caminha «prá-morte! prámorte! prá-morte!» (grito comum n?A Farsa .... ). É então no Corvo que «o tempo assume proporções extraordinárias», e que leva Brandão a fazer esta afirmação lapidar: «O Corvo não tem peso no mundo, mas nunca senti como aqui a realidade e o peso do tempo» (?O Corvo?). O seu terror humano maior fora e seria sempre o estar à espera da morte. Nestas ilhas de sonho (pela paisagem), o Sonho (o outro, o brandoniano, de evasão e também de projecto interior) ainda ganha mais dramaticidade, pelo diálogo com a natureza. Brandão, colocado na encruzilhada do Impressionismo e do Expressionismo, «amontoa» informação colhida com êxtase e com uma percepção sensorial global, com a qual depois funde os sentimentos tumultuários de espanto, de admiração, de medo.

Da convulsão telúrica adivinhada no outrora vulcão das Sete Cidades (S. Miguel), Brandão «extrai» esta frase de impressionismo exemplar: «As forças desencadeadas chegaram a este resultado: ? um pouco de azul, um pouco de verde, ternura e idílio ...» (?As Sete Cidades e as Furnas?).

As Ilhas Desconhecidas são porém o livro de um não ilhéu. A sua percepção e alta receptividade fotolátrica, educada desde as praias da Foz do Douro, exige a «força» da luz do continente. No fim do livro começa a suspirar pela luz mais forte do continente («a luz que me criou», «sofreguidão de luz», «luz alegre», «luz que vibra toda»): «Começo a andar inquieto. Não pude dormir toda a noite, desejei com sofreguidão outra luz - a luz que me criou. Nem na Madeira a luz me satisfaz. Cansa-me. Todas as manhãs espio o céu nublado à espera que a luz irrompa. Embarco. A noite de 29 de Agosto passo-a no tombadilho, sempre à espera, numa sofreguidão de luz [...].

Mas de manhã a borrasca aplaca-se dentro da bacia de Cascais ? e irrompe uma luz alegre, uma luz que vibra toda, uma luz em que cada átomo tem asas, vem direito a mim como uma flecha de oiro. No céu imenso, azul e livre, o sol bóia num grande fluido».

Esta diferente sensibilidade, carente de luz, não apouca porém a paisagem difusa, nublada, dormente dos Açores («azorean torpor», citou Nemésio, evocando os irmãos Bullar em viagem pelo arquipélago). Ninguém como Brandão - justamente por ser de fora e ter tido a sensibilidade que teve ? deu a prodigalidade de cores e tons (os verdes, os azuis, os cinzentos, etc.) que caracteriza a paisagem açoriana. Foi sensível também ao tempo, psicologicamente inserido num deserto de mar que torna a vida quase atemporal, e se melhor não captou a fragilidade do homem açoriano perante o outro tempo, o da natureza e das tempestades, é porque a sua viagem se fez em Julho e Agosto, estação agradável no clima do arquipélago açoriano. Pode, pois, ser considerado um dos «fundadores» da Literatura Açoriana, isto é, que tem como quadro de referências e de vivências os Açores.

Brandão era um sensitivo, um espontâneo, um «sentimental» ? as impressões, muito vivas, ficava a «ruminá-las» e interiorizá-las, passando para a escrita essas tumultuárias e atormentadas reacções ao mundo e à vida. Esta, apesar de todo o seu cortejo de dores e pessimismos, é, porém, «um momento de ternura e mais nada» (Memórias, 1919), um sopro frágil («já tiveste nas mãos uma andorinha? É penas e vida frenética» (Ibid.), mas é também um turbilhão, uma «corrida para a morte», que é preciso aproveitar, com humildade e disponibilidade. A sensação de vida não vivida, expressa por Brandão ele mesmo (Memórias), pelo filho da Candidinha (A Farsa), mas principalmente pela velha (de O Avejão), torna-se quase obsessiva neste homem fim de século, que captou bem a angústia finissecular e a potenciou com os dados do seu temperamento introvertido e do carácter secundário, que «remói» interiormente o primeiro choque das sensações. Um homem muito peculiar, uma época muito particular?ou como com muita pertinência viu Vergílio Ferreira: «No limiar de um mundo. Raul Brandão» (Ferreira, 1976). António Machado Pires (Mai.1998)

Obras (1890), Impressões e Paisagens [ainda incipientes relatos naturalistas]. (1891), Os Nefelibatas [folheto assinado com o pseudónimo de Luís de Borja]. (1896), História de um Palhaço. (1901), O Padre. (1903), A Farsa. (1906), Os Pobres. (1912), El Rei Junot. (1914), A conspiração de 1817. (1917), 1817: A conspiração de Gomes Freire. (1917), Húmus. (1919), Memórias I. (1922), A conspiração de Gomes Freire [3ª ed.; Haverá, postumamente, uma 4ª ed. só em 1987, com o título Vida e Morte de Gomes Freire, em consequência das alterações deixadas por Brandão]. (1923), Os Pescadores. (1926), A morte do palhaço e O Mistério da árvore. (1926), As Ilhas Desconhecidas [o livro conhece quatro edições em 1926/1927]. (1927), Jesus Cristo em Lisboa. [co-assinado por Teixeira de Pascoaes]. (1929), O Avejão. [teatro]. (1931), O Pobre de pedir [póstumo]. (1933), Vale de Josafat [3° vol. das Memórias, póstumo].

 

Bibl. Andrade, J. P. (s.d.), Raúl Brandão. A Obra e o Homem, Lisboa, Arcádia. Castilho, G. (1971), A Farsa e a problemática de Raúl Brandão. Colóquio Letras, 2, Junho. Id. (1979), Vida e Obra de Raúl Brandão, Lisboa Liv. Bertrand. Coelho, J. P. (1976), Raúl Brandão: a consciência burguesa de culpa In Ao Contrário de Penélope. Lisboa, Liv. Bertrand. Id. (1976), Da vivência do tempo em Raúl Brandão In Ibid. Ferreira, V. (1976), No limiar de um mundo, Raúl Brandão In Espaço do Invisível. Lisboa, Arcádia, II. Machado, A. M. (1984), Raúl Brandão. Entre o Romantismo e o Modernismo. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Nemésio, V. (1932), Raúl Brandão, íntimo In Sob os Signos de Agora. Coimbra, Imp. da Universidade. Pires, A. M. (1982) Uma imagem da presença francesa em Portugal: El-Rei Junot de Raúl Brandão In Actas do Simpósio sobre as Relações entre a Cultura Portuguesa e a Cultura Francesa. Paris, Fundação Calouste Gulbenkian. Id. (1988), Raúl Brandão e Vitorino Nemésio. Lisboa, Imp. Nacional-Casa da Moeda. Id. (1998), O essencial sobre Raul Brandão. Lisboa, Imp. Nacional /Casa da Moeda. Serrão, J. (1962), Raúl Brandão: espanto, absurdo e sonho In Temas Oitocentistas. Lisboa, Portugália, II. Viçoso, V. (1978), Húmus (textos escolhidos). Lisboa, Seara Nova [apresentação crítica, selecção, notas e sugestões para análise literária].