Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

autonomia

O primeiro problema que se levanta, quando se aborda o fenómeno da autonomia nos Açores, é saber desde quando se pode falar de aspirações autonómicas. Estão presentemente em confronto duas opiniões: uma que entende que a autonomia, mesmo sem esse nome, é uma constante da organização política e social do arquipélago desde os primórdios e outra que defende que o início do fenómeno autonómico é característico e indissociável do liberalismo do século xix e só com ele e com o Estado-Nação se pode, com propriedade, falar de aspirações autonómicas. Por outro lado, o próprio conceito de autonomia é fluido, no que a generalidade dos autores está de acordo, e que à sombra dele tanto se pode falar de total independência, como de descentralização administrativa ou ainda de vários graus descentralizadores das funções do Estado. Por isto mesmo, para se apreender o conceito em relação aos Açores é imprescindível atender à evolução do fenómemo e sedimentar as várias fases para se concluir que ele é, na generalidade, entendido como uma velha aspiração dos Açorianos de, sem quebrarem os laços com Portugal, se autogovernarem com autonomia dentro do Estado português.

Para os que defendem que a autonomia se confunde com a própria história dos Açorianos, a organização das capitanias, logo no início do povoamento, e os poderes dos capitães do donatário são sintomas de uma forte descentralização política que terá condicionado a dialéctica futura entre poder central e poder regional. Ao longo da história política açoriana, as aspirações do poder local de se libertar da tutela centralista, como a querela jurídica que aconteceu entre a Câmara de Angra, no século xvii, e o governador do castelo e capitão-geral, Manuel de Sousa Pacheco, nomeado com poderes políticos de tutela, por D. João IV, em seguida à Restauração, são demonstrativos de aspirações autonómicas insulares. Como o é o pensamento do jesuíta António Cordeiro, quando na História Insulana ensaia um modelo de «marítimo governo» para as ilhas, assente num poder naval e mercante próprio e que esse governo fosse confiado a açorianos de raiz e residência. A sua proposta, feita ao rei D. João V, no dealbar do século xviii, é a primeira e clara teorização de uma filosofia política autonomista açoriana.

A tudo isto se poderá chamar uma proto-história da autonomia, em que o conceito não tem contornos claros e em que não existe uma condução linear de política local no sentido de uma organização de governo próprio. Do outro lado estão os que defendem que estes fenómenos são meramente interpretáveis à luz da organização corporativa do poder político característica dos séculos xvi e xvii e que, por isso mesmo, é um anacronismo querer vê-los como sintomas de aspirações autonómicas definidoras de uma especificidade açoriana. Só com o Estado moderno e com a sua uniformização política se pode então falar de um fenómeno autonomista nas ilhas, como pensamento e resistência a essa mesma unificação. De uma forma clara, a autonomia nasce e desenvolve-se como contestação à centralização do Estado liberal no século xix e inscreve-se nesse longo debate entre centralização e descentralização, que atravessou todo o nosso liberalismo, espelhando-se nos sucessivos Códigos Administrativos. Contudo, outras duas questões se levantam em relação a estes conceitos sobre autonomia. Uma delas prende-se com o modo de organizar o poder político no arquipélago: de uma forma descentralizada ou centralizada. Aqui também as condicionantes que levaram a uma pulverização política no início do povoamento, e que se prolongaram por muito tempo, condicionaram a discussão. As tendências centralizadoras do poder político nas ilhas, concentrando-o numa figura de delegado régio, tipo governador-geral ou vice-rei, encontraram sempre a maior resistência, ainda que se possa dizer que tais oposições eram encarnadas pelos poderosos, em defesa dos seus interesses, e combatidas pelos desfavorecidos, que viam nesse delegado um entrave às prepotências dos notáveis. Assim se tem interpretado a resistência manifestada pela Câmara de Angra (arvorada em representante dos Açores), nas Cortes de 1653, à ideia régia de nomear um capitão-geral para o arquipélago, conseguindo o compromisso real de que o não faria nunca sem consultar a própria câmara angrense. Mas na verdade as limitações interpretativas ocasionais não devem fazer esquecer a linha de orientação de uma leitura de aspiração de autogoverno, que veio a ser teorizada, ela também, por António Cordeiro, ao defender, já no século xviii, a inconveniência de se governar as ilhas, à força, com uma só cabeça. Por isso, a capitania-geral pombalina, na segunda metade do século xviii (1766), é a vitória do pensamento centralista do Estado contra a vontade de autonomia política das ilhas e também por isso mesmo foi sempre altamente contestada e não pôde sobreviver ao fim do absolutismo e ao nascimento do Estado liberal. A queixa do segundo capitão-geral, de que os Açorianos o que não toleravam era o serem governados por alguém que não fosse dos seus, parece sintomática e demonstrativa de qual o impedimento da existência da capitania-geral. Parece ser assim mais bem compreendido que as revoluções liberais locais se tenham feito, na sequência da revolução nacional de 1820, contra o poder centralista do Estado, personificado no capitão-geral, e que a influência dos seus mentores nas primeiras cortes liberais tenha sido no sentido de terminar com a centralização do poder político no arquipélago e dar início a uma caminhada para o estabelecimento de três centros político-administrativos (Ponta Delgada, Angra e Horta), o que acabou por desaguar na existência dos distritos açorianos. Contudo, não foi pacífica esta opção e um grupo de liberais da linha esquerdista e progressista, liderado por João Soares de Albergaria de Sousa, expôs um conjunto de ideais, na Corografia Açórica (1822), no sentido da conveniência de se manter a unidade do poder político no arquipélago, organizando-se uma forma democrática de governo local, com a participação de todas as ilhas e o exercício do poder pelos Açorianos, numa clara demonstração de aspirações autonomistas.

A segunda questão que se levanta nesta análise do conceito de autonomia prende-se com as opções separatistas, mas que não devem deixar de aqui ser invocadas porque, manifestamente, se desenvolveram em paralelo com as opções autonomistas integradoras no Estado português e muitas vezes se entrelaçaram os dois conceitos. Com a vitória do liberalismo, os Açores, que tiveram papel preponderante nessa vitória, acabaram por ser integrados, como ilhas adjacentes, na organização do Estado como uma outra qualquer parcela do Reino, divididos em três distritos e sem lei especial que atendesse às suas particularidades. Assim viveram até cerca de 1890, quando se iniciou aquilo que se tem definido como o primeiro movimento autonómico. Tal movimento teve como causas próximas a profunda crise económica em que as ilhas haviam mergulhado no final desse século (em que se assistia a uma enorme emigração), com grandes dificuldades na agricultura e no escoamento dos seus produtos, e a guerra feita, por interesses continentais, à produção de álcool no arquipélago, que era a base da industrialização de S. Miguel e da Terceira e supostamente a da sua riqueza. Mas não se pode esquecer que o Estado português atravessou, nesse período, uma gravíssima instabilidade que levava o rei e os sucessivos governos a endurecerem a conduta e a aumentar a fiscalidade.

Em 1892, Aristides Moreira da Mota, deputado eleito pelo Partido Regenerador no círculo de Ponta Delgada, apresentou na Câmara dos Deputados o primeiro ensaio de legislação especial para o governo dos distritos açorianos. Era uma visão audaciosa da descentralização política e administrativa, na qual se vislumbra a ideia de se vir a criar um estado regional. Foi muito aplaudido em certos círculos das ilhas, mas não encontrou o eco suficiente para fazer vingar as suas teorias, não chegando o seu projecto sequer a ser discutido. Contudo, levantou no arquipélago um incontestável movimento a favor da autonomia administrativa, que se discutiu abertamente por toda a parte, principalmente a partir de 1893, com a criação de uma Comissão Autonómica e outras distritais. O resultado dessa aberta e alargada polémica foi a concentração das aspirações autonómicas à volta de dois núcleos dinamizadores. O de Ponta Delgada (liderado por Gil Mont?Alverne de Sequeira), mais pragmático e entusiasmado, preconizando uma legislação menos ambiciosa, mas suficientemente dúctil para que o governo central a pudesse aceitar. Mantinha a opção da existência de três distritos e desenvolvia o futuro poder autonómico à volta das Juntas Gerais, ressuscitadas para esse fim. Deste grupo saíram os deputados autonomistas, eleitos em 1894 independentemente dos partidos rotativistas, mas apoiados pelos progressistas, que apresentaram nas cortes as propostas micaelenses para a nova legislação administrativa dos Açores. O outro núcleo autonomista desenvolveu-se em Angra do Heroísmo, o qual, não conseguindo uma organização tão eficiente como a do seu congénere de Ponta Delgada, apresentou um conjunto de ideais em que preconizava uma autonomia mais próxima do municipalismo e com altas preocupações de unidade açoriana, onde se criaria a figura de um congresso açoriano que seria certamente o embrião de um futuro parlamento, ainda que na sua versão inicial não tivesse claros poderes legislativos. Porém, este conjunto de propostas acabou por não vingar e não ter seguimento imediato.

Da discussão destas propostas tão desencontradas saiu um compromisso entre os deputados autonomistas micaelenses (um deles Gil Mont?Alverne de Sequeira) e o governo em ditadura de Hintze Ribeiro, com João Franco na pasta do Reino, para a promulgação de um decreto de organização administrativa especial para os distritos açorianos que a solicitassem. Foi o decreto de 2 de Março de 1895, a primeira legislação autonómica açoriana, que ficou conhecido pelo Decreto *Autonómico. Ficava muito aquém dos ideais autonomistas iniciais, mas era considerado como a meta possível naquele momento político nacional e regional. Era apresentado como uma experiência a iniciar e limitava-se a autorizar uma organização administrativa de excepção ao Código Administrativo. A autonomia autorizada era só administrativa e criava as Juntas Gerais com poderes especiais e reforçados daquelas outras que haviam existido nos distritos na vigência do Código de 1886. Mantinha a existência dos distritos, criando uma Junta Geral em cada um daqueles que a solicitasse, através de dois terços dos eleitores, formada por procuradores eleitos directamente nos municípios, não avançando para qualquer experiência de união regional. O governo central exercia forte tutela nas Juntas Gerais, através dos governadores civis e pela autorização que dele dependia para a execução de grande número de deliberações desses órgãos. O decreto de 1895 foi fortemente contestado nos círculos autonomistas mais avançados, mas aplicou-se, sem dificuldade, no distrito de Ponta Delgada, logo em 1896 e no de Angra do Heroísmo em 1898. O distrito da Horta, argumentando falta de capacidade financeira, nunca pediu, nos termos da lei, a sua aplicação.

O regime instituído em 1895, com modificações no sentido de maior tutela governamental, em 1901 (que o estendeu à Madeira), acabou por ter uma longa vida. A sua aplicação estendeu-se sem grandes sobressaltos até aos anos 20 do nosso século. Mesmo com a mudança de regime em 1910, a República não trouxe novidades para a organização do poder autonómico. Limitou-se, em 1913, depois de se ter demonstrado incapaz de elaborar um Código Administrativo, a observar na lei de 7 de Agosto desse ano o conteúdo do velho decreto de 2 de Março de 1895. Mudava, evidentemente, o pessoal político, mas não se alterava a organização administrativa.

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, com a crise social e económica subsequente e tendo por pano de fundo a incapacidade dos governos republicanos em afastar a anarquia em que o poder político caíra e ainda o crescente entusiasmo em vastos sectores da sociedade açoriana por uma aproximação aos Estados Unidos da América (suscitada pela emigração e pela existência, no porto de Ponta Delgada, de uma base naval americana até 1919), renasceu no arquipélago o entusiasmo pela questão autonómica, originando o segundo movimento autonomista.

Nesta fase do processo autonómico, é preciso ter em consideração a existência de um forte movimento regionalista, gerador de entusiasmos sobre as características individualizadoras dos Açorianos, sobre o patriotismo local e sobre o gosto pelo estudo de etnografia e dos costumes populares. Foi a época em que se falou abertamente da pátria açoriana e em que se tentaram os primeiros ensaios de uma literatura e de uma arte açorianas autónomas. Muitos destes cultores não tinham sequer claras opções políticas e não eram mentores do movimento autonomista, ainda que outros tenham sido seus destacados dirigentes. No campo da política local a contestação à República e ao centralismo jacobino do Partido Republicano Português foi essencialmente conduzida por monárquicos e conservadores, ainda que tivessem aparecido alguns republicanos moderados ao lado das forças autonomistas. O mais destacado foi, sem dúvida, Francisco de Athaide M. de Faria e Maia, senador e promotor de um projecto legislativo sobre a autonomia açoriana, apresentado em 1921, no qual retomava as linhas de orientação daquele outro que, em 1892, Aristides Moreira da Mota havia levado às Cortes. Mas os tempos não eram para inovações legislativas e muito menos para ousadias descentralizadoras, para mais lideradas pelos inimigos jurados do radicalismo republicano. Contudo, o movimento político regionalista teve forte implantação no distrito de Ponta Delgada, onde se criou, em 1925, o Partido Regionalista e onde já anteriormente o movimento disputara com êxito as eleições legislativas de 1921 e pontificava na Junta Geral micaelense. O mentor mais destacado desta acção política regionalista foi, sem dúvida, José Bruno Carreiro.

Em Angra do Heroísmo o movimento regionalista dos anos 20, ainda que activo e forte, principalmente na área da literatura e da investigação etnográfica, foi bem mais moderado no campo da política, sempre desconfiado da sinceridade patriótica de muitos dos líderes micaelenses. Destacou-se com papel didáctico e teorizador de uma autonomia moderada e disciplinada o administrativista e etnógrafo Luís da Silva Ribeiro. Tal como era de esperar, não surgiram alterações práticas destes projectos e também, sem surpresa, os seus mentores receberam, sem resistência e alguns até com entusiasmo, a revolução de 28.5.1926. Significava o afastamento do jacobinismo republicano e o regresso às teorias conservadoras, parecendo mesmo que a ditadura militar estava disposta a entender-se com os regionalistas para conseguir a sua implantação pacífica no arquipélago. A nomeação de um oficial do exército, açoriano, o coronel António Feliciano da Silva Leal, como delegado especial do Governo da República e a integração no seu gabinete de regionalistas, como José Bruno Carreiro, pareciam ser provas suficientes dessa abertura.

De novo renascia o entusiasmo pela unidade açoriana e se acalentava a ideia da Província Autónoma dos Açores. Mas pode afirmar-se que a síntese possível das desencontradas aspirações de uma renovada política regionalista e autonómica não permitia ir além de retoques nos conceitos expressos de autonomia administrativa distrital do velho decreto de 2.3.1895. É isso mesmo que exprime o decreto ditatorial de 16.2.1928, que reafirmava a sensatez das soluções encontradas em 1895, ainda que substituindo-o formalmente. A autonomia continuava administrativa e distrital, mas consagravam-se as aspirações de as Juntas Gerais verem aumentadas as suas receitas e, por essa via, terem meios financeiros que lhes permitissem avançar para uma acção alargada no fomento e no desenvolvimento distrital. Havia ainda alguma ousadia política, porque os presidentes das Juntas Gerais passavam a ser eleitos pelos procuradores, sendo estes agora eleitos por lista. A intervenção dos governadores civis era, por seu turno, diminuída, abolindo-se a sua aprovação tutelar para as deliberações das juntas. Neste sentido avançava-se, de facto, na autonomia. Mas este entendimento e orientação durou pouco e, logo em 31.7.1928, se iniciava uma nova filosofia expressa em decreto dessa data, o primeiro sobre tal questão assinada pelo então ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar. O que mudava com a nova legislação era essencialmente a forma de encarar as funções da Junta Geral, para a qual se transferiam novos serviços (os até aí dependentes do Ministério do Comércio e Comunicações, da Agricultura e da Instrução e, bem assim, outros dependentes dos Ministérios do Interior e das Finanças), sem que se lhe aumentassem as receitas, afogando-se a sua capacidade de investimento, que tinha sido a causa do anterior decreto do mesmo ano. Por outro lado, apareciam pela primeira vez, na composição da Junta Geral, os procuradores natos (6 em 15), evidentemente não eleitos, que davam a este corpo uma matriz corporativa.

A importância do decreto de Julho de 1928 que, como o anterior, nunca se aplicou, reside ainda no facto de que com ele se iniciou, nos Açores, a montagem da estrutura política do Estado Novo, tarefa que levaria mais de dez anos e que se concluiria com o Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes, em 1940. Uma filosofia fascizante, ultranacionalista e profundamente corporativista, como era aquela que inspirava a nova política, não podia ser prometedora de grandes avanços quer na prática administrativa autonómica, quer ainda menos no espaço para teorias e discussões de princípios autonómicos políticos. Os que se prestaram a colaborar compreenderam-no certamente e os outros automarginalizaram-se ou foram perseguidos e reprimidos. As etapas do estabelecimento do novo regime de autonomia administrativa para as ilhas adjacentes seguiram aquelas da organização do Estado Novo. A Constituição de 1933 anunciava que os Açores e a Madeira teriam um regime administrativo especial e, por essa razão, o Código Administrativo de 1936 não incluía as normas aplicáveis às ilhas, sendo esta matéria tratada numa lei de bases (lei n.º 1967, de 30.4.1938), que se discutiu durante o mês anterior nos Açores, na Câmara Corporativa e na Assembleia Nacional e que foi desenvolvida no Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes, em Dezembro de 1940. A referida lei de bases definia o essencial do novo regime administrativo das ilhas adjacentes e ficavam bem claros dois aspectos essenciais. Nem o Estado estava disposto a aceitar qualquer descentralização política, nem tão-pouco a perder uma forte tutela sobre as Juntas Gerais. Por outro lado, a opinião pública dos arquipélagos estava devidamente amordaçada e domesticada, para que se temesse qualquer resistência. Assim, tudo se conjugava para que as Juntas Gerais pudessem ver reduzidos os seus membros a 7 (4 eleitos por lista e 3 natos, sendo os eleitos indirectamente pelas câmaras municipais e organismos corporativos, ou seja, um colégio de nomeados) e os seus presidentes designados pelos governadores civis, não obrigatoriamente de entre os procuradores. Estava em marcha a estrutura corporativa do Estado Novo e já instalados os seus fiéis servidores nas ilhas, sendo a autonomia uma mera sombra. As vozes discordantes limitavam-se a uma comissão presidida por Luís de Bettencourt de Medeiros e Câmara, nomeada pela Junta Geral de Ponta Delgada, que se insurgia, em tom moderado, contra a exiguidade do número de procuradores, a origem dos natos como funcionários da junta e a designação do presidente pelo governador civil, mas nada disso fazia escola. O Congresso Açoriano, reunido em Lisboa, em Maio de 1938, tudo aceitou e tudo louvou.

Aprovadas as bases, Marcelo Caetano, no seu papel de administrativista e teórico do novo poder, percorria as ilhas, auscultava vontades e arrebanhava fiéis e com tudo isso elaborava o Estatuto dos Distritos Autónomos, com o qual as ilhas se governariam entre 1940 e 1974. O documento uniformizava o sistema administrativo, aplicando-o ao distrito da Horta, único que se mantivera afastado das soluções autonómicas. O estatuto passou a ser considerado exemplar no direito administrativo, formalmente de grande qualidade e o espelho do precário mas possível equilíbrio entre a velha vontade autonomista das ilhas e a inflexível centralização política do Estado Novo.

É verdade que, mesmo dentro do regime, se levantavam, por vezes, vozes discordantes, como a de Urbano Mendonça Dias, em plena União Nacional, mas não encontravam receptividade. O regime estava para durar e a sua armadura era uma carapaça estática que muito dificilmente se modificava. As alterações de 1947 não modificam em nada a filosofia política e administrativa, e quando em 1954 se reuniu em Ponta Delgada a Conferência Insular, o clima foi de tal modo centralista, que o próprio presidente da Junta Geral formulou a vontade de que o termo autonomia se substituísse por descentralização, a fim de se evitar equívocos. O tom geral das intervenções, para além de afastar qualquer intenção de unidade política do arquipélago dos Açores, uma obsessão dos tempos, foi de louvor a Salazar e ao regime.

Ter-se-ia de esperar por uma nova geração, em que se distinguiriam professores do Seminário de Angra, que em 1957 fundaram o Instituto Açoriano de Cultura, promotor das Semanas de Estudos, para que se criasse nos Açores um clima propício à discussão da problemática do desenvolvimento e da justiça social e em que se encarasse a verdade insofismável que os Açores eram uma unidade, o que o próprio regime acabaria por aceitar com a criação da V Região, em 1969, quando instituiu as Regiões Plano. Mas nessa geração o fenómeno da política activa parecia estar afastado, pois eram essencialmente tecnocratas. Contudo, notava-se, nos finais dos anos 60, um clima de caducidade do regime e, consequentemente, das suas soluções político-administrativas para os arquipelágos insulares. A Revolução de 25 de Abril de 1974 abriu um novo período de possibilidades ao pensamento político regional e criou um clima de discussão aberta de ideias e de projectos. Como era de esperar, as velhas correntes sobre os diversos conceitos de autonomia reapareceram em confronto e o primeiro ano de revolução foi mesmo de discussão acalorada e nem sempre pacífica entre elas. No essencial, reapareciam as linhas de força clássicas: os separatistas, com a sua velha atracção pela solução proteccionista dos Estados Unidos da América, os autonomistas moderados e essencialmente defensores de uma autonomia administrativa e distrital, com base nas Juntas Gerais, e a corrente defensora de uma unidade política e interna das ilhas, com a correspondente versão de uma autonomia política, administrativa e financeira.

Não cabe aqui fazer, nem sequer superficialmente, uma história política açoriana desses conturbados tempos revolucionários, mas não se poderia compreender o que se passou sem invocar a tentativa comunista de tomada do poder, pelos métodos clássicos das revoluções marxistas, no Continente, e a verdadeira reacção popular que isso acarretou. Os Açores foram então precursores desse movimento de resistência e pode-se afirmar que a linha de orientação de uma unidade política do arquipélago a que correspondesse a autonomia política ganhou a guerra nessa batalha. As outras duas correntes veriam inviabilizadas as suas propostas: a separatista por manifesta falta de apoios internos e por ter sido abandonada pela política americana quando em Portugal passou o perigo comunista; a da autonomia administrativa, onde se haviam refugiado os governadores civis fiéis às instruções do governo de Lisboa, por se ver inviabilizada pela fraqueza das forças governamentais e militares incapazes de suster a revolta popular (principalmente a manifestação de 6.6.1975 em Ponta Delgada) sem concessões às suas exigências. Acabavam ingloriamente os Distritos Autónomos insulares e não vingava a tentativa da criação da Província dos Açores, ensaiada em Abril de 1975, pelo Ministério da Administração Interna, como mecanismo de controlo do poder político regional. Vencia a corrente de uma autonomia comandada politicamente a partir dos Açores e negociada com o poder instituído. A face visível desta nova orientação era a Junta Regional dos Açores (Agosto de 1975), presidida pelo governador militar, formada por seis vogais especialistas no domínio económico, dos equipamentos colectivos, do trabalho e assuntos sociais, educação e cultura, e directamente dependente do primeiro-ministro. A função política essencial da Junta era a elaboração de um projecto de diploma de estatuto de autonomia e dos órgãos de administração da Região dos Açores. A linha mestra de orientação da política autonómica era, contudo, definida pelas propostas do então Partido Popular Democrático, criado nos Açores logo nos primeiros meses após o 25 de Abril e cujo dirigente mais destacado era já então João Bosco Mota *Amaral, que se tornaria na figura tutelar deste terceiro movimento autonómico.

Passado o período revolucionário mais agudo e eleita a Assembleia Constituinte, os partidos políticos condutores das novas orientações apresentavam os seus projectos. O Partido Popular Democrático, primeiro, o Partido Socialista logo em Setembro de 1975 e, por arrastamento, o Partido Comunista Português em Março de 1976. Paralelamente, a Junta Regional, cujos vogais eram fiéis ou simpatizantes do PPD e do PS, desincumbia-se da sua obrigação de preparar o anteprojecto do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma do Açores, que, depois de várias peripécias, acabou por ser transformado no Estatuto Provisório da Região Autónoma dos Açores, em 30.4.1976, já em execução das normas da Constituição entretanto aprovada a 25 de Abril desse ano. Havia sido, porém, na Assembleia Constituinte que se arquitectara o novo edifício político da autonomia para as Regiões dos Açores e Madeira e nessa assembleia as propostas do PPD e do PS acabaram por fazer valimento, com inevitáveis cedências de parte a parte e com os entraves do PCP.

O perfil da nova autonomia era, sem dúvida, um avanço incomensurável em relação a qualquer outra das experiências anteriores, caracterizando-se pelas suas facetas constitucional, democrática e política. No essencial, a Constituição recolhia no seu seio que o regime político-admnistrativo próprio dos Açores e Madeira se fundamentava nas características especiais desses territórios (geográficas, económicas, sociais, e a partir da revisão de 1982, culturais) e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares. O fim último dessa autonomia era definido como visando a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses. As novas regiões passavam a ter órgãos de governo próprio, uma Assembleia Legislativa Regional e um Governo Regional. A Assembleia era eleita por sufrágio universal e o governo politicamente responsável perante ela. A Assembleia era a depositária do poder legislativo que a Constituição reconhecia às regiões e que tinha como limites a própria Constituição e o interesse específico regional. A soberania da República passava a ser especialmente representada nas regiões autónomas por um ministro da República, nomeado e exonerado pelo presidente da República. A este ministro competia nomear o presidente do governo regional, tendo em conta os resultados eleitorais, nomear e exonerar os restantes membros do governo regional, sob proposta do respectivo presidente, e ainda velar pela constitucionalidade dos actos dos órgãos de governo próprio da região. As regiões passaram ainda a ter autonomia financeira e poder tributário próprio, dispondo das receitas fiscais nelas cobradas e de outras que lhe fossem atribuídas, afectando-as às suas despesas.

Como se pode verificar, pela primeira vez se ensaiava para as regiões insulares um sistema político próprio, muito avançado em relação ao que então se havia experimentado e mesmo em comparação com o que outros estados europeus haviam decidido, a partir do pós-guerra, para as suas regiões e onde se recolhiam velhas reivindicações e aspirações de sucessivas gerações. A experiência autonómica de governo próprio começou a concretizar-se com a eleição da primeira Assembleia Regional, em 27.6.1976, que reuniu na cidade da Horta em 21 de Julho seguinte, com a tomada de posse do primeiro ministro da República em 1 de Setembro, em Lisboa e, em 8 de Setembro, com a posse do 1.º Governo Regional dos Açores, em Ponta Delgada.

O edifício político da autonomia constitucional completava-se com a tarefa atribuída às Assembleias Regionais de elaborarem propostas de estatutos político-administrativos a serem submetidos à aprovação da Assembleia da República. Na Região Autónoma dos Açores, no início de 1979, iniciou a sua Assembleia a discussão deste assunto com base em projectos apresentados sucessivamente pelo PS e pelo Partido Social-Democrata (antigo PPD), sendo aprovado o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores em 1980, na Assembleia da República. Anteriormente, a Assembleia havia discutido e aprovado os símbolos próprios regionais, a bandeira e o hino.

A experiência ao longo de vinte anos deste modelo de autonomia parece poder levar à conclusão de ser globalmente positiva e ter alcançado, no essencial, os fins constitucionais, ainda que enfrentado, por vezes, uma interpretação restritiva das competências legislativas regionais por parte do ministro da República e do Tribunal Constitucional, o que conduziu a algum bloqueio do poder legislativo regional. No campo financeiro, a experiência tem também demonstrado que a norma constitucional que vincula os órgãos de soberania a corresponsabilizarem-se no financiamento regional é insuficiente para ultrapassar o défice crónico das regiões autónomas. J. G. Reis Leite (Set.1997)

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