Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Dutra

(Utra ou d?Utra) Da ilha do Faial ? Precedem de Léo Van Hurtere, fidalgo flamengo, bailio de Wynandael e senhor de Haeghebrouc, residente em Bruges nos meados do século XV.

O seu filho herdeiro, Bartolomeu Van Hurtere, seguiu a carreira das armas, militando nos exércitos de Filipe ?o Bom?, Duque de Borgonha e marido da infanta portuguesa D. Isabel, filha de D. João I, e do filho de ambos, Carlos, ?o Temerário?.

Um outro seu filho (talvez secundogénito), Josse Van Hurtere, conhecido em Portugal como Jorge d?Utra, terá herdado o senhorio de Moerkerk e outras terras na Flandres, que vendeu posteriormente para financiar a colonização da ilha do Faial. Iniciou a sua carreira na Corte de Borgonha, onde terá desempenhado o cargo de panadeiro-mor da Duquesa D. Isabel de Portugal, por cuja influência se terá deslocado a Lisboa em data posterior a 1467. São divergentes, e contraditórios, os relatos das circunstâncias em que obteve a capitania das ilhas do Faial e Pico, e a própria carta da concessão se extraviou. De acordo com Jerónimo Münzer, que foi seu hóspede, residiu em Lisboa, numas boas casas próximas do convento de S. Domingos, e está documentado como cavaleiro da casa do infante D. Fernando, filho adoptivo e herdeiro do infante D. Henrique.

Não constam dos arquivos onde se conserva a documentação relativa às relações entre Portugal e a Borgonha quaisquer documentos que confirmem, ou desmintam, o patrocínio alegadamente prestado pela duquesa Isabel de Portugal ao povoamento flamengo dos Açores em geral, ou das ilhas do Faial e Pico em particular. No entanto, várias fontes referem uma primeira viagem exploratória ao Faial levada a cabo por Jorge d?Utra e umas dezenas de flamengos, atraídos pelo rumor da existência de interessantes recursos minerais. A constatação da inexistência de metais preciosos terá originado conflitos que teriam estado na origem do estabelecimento de Jorge d?Utra em Lisboa.

Na capital portuguesa casou com Brites (ou Beatriz) de Macedo, natural de Arraiolos, ou Borba, e filha de Jerónimo Fernandes, criado do duque de Bragança. Pretendem alguns que a capitania das ilhas do Faial e Pico lhe tenha sido doada, por iniciativa da infanta D. Beatriz, mulher do infante D. Fernando, a cuja casa pertenceria a noiva, como dote, ou por intermédio de um clérigo flamengo da Corte de D. Afonso V, a quem ela estaria inicialmente destinada, o que parece pouco verosímil. Como quer que fosse, é pacificamente aceite que o infante D. Fernando outorgou a Jorge d?Utra a capitania hereditária das ilhas Faial e Pico e, embora a carta original se tenha extraviado, temos conhecimento indirecto de excertos dela, citados na demanda movida pelo seu bisneto Jorge d?Utra Corte-Real, que pretendia suceder na capitania. Subsistiu também uma carta de sesmaria, redigida no Faial, a 12.1.1486, em que Jorge d?Utra se nomeia como «cavaleiro da Casa do senhor Duque e Capitão por ele em suas ilhas do Faial e Pico».

Embora se presuma que a capitania lhe tenha sido entre 1468 e 1470, as notícias da sua residência efectiva no Faial são posteriores. Radicou-se em Porto Pim, onde ergueu a sua morada de casas e a ermida de Santa Cruz, onde viria a ser sepultado, cerca de 1495, como consta do testamento de sua mulher, lavrado mais de trinta anos depois (24.4.1527). Parece seguro que o núcleo de povoadores sob a sua autoridade incluía uma representativa percentagem de compatriotas flamengos que, embora deixando traços inegáveis nos usos e costumes, e na toponímia local, foram rapidamente assimilados. Dentre eles destacou-se, no campo das artes e mesteres, Luís Gouwaret (apelido não consensualmente reconstituído), técnico da cultura do pastel, planta tintureira destinada às manufacturas de tecidos da Flandres e genearca dos Gulartes (que vieram a adoptar a grafia Goulart) dos Açores.

Os primeiros capitães-do-donatário das ilhas Faial e Pico tiveram três filhos e oito filhas. O primogénito, também chamado Jorge d?Utra, sucedeu na capitania, que foi confirmada por D. Manuel I, em carta passada em Évora a 31.5.1509, e reconfirmada por D. João III (de cuja Casa foi fidalgo escudeiro com 1.000 réis de moradia) em 22.10.1528. Durante os seus quase 50 anos de governo da capitania (1495-1549), parece ter-se revelado autoritário, e chegaram até aos nossos dias informações sobre uma vida familiar recheada de conflitos. Casou com D. Isabel Corte-Real, filha do não menos enérgico, e controverso, João Vaz *Corte-Real, capitão-do-donatário na jurisdição de Angra, ilha Terceira. Foi sepultado, de acordo com a sua vontade expressa, na ermida de S. Tiago, defronte da sua morada, e essa sepultura foi encontrada cerca de 1851, durante escavações efectuadas no edifício do então governo civil.

Das irmãs do 2.º capitão Jorge d?Utra, que casaram com homens da sua condição, deixando numerosa geração que se espalhou pelos Açores, Continente e Américas, é justo que se destaque Joana de Macedo, a 4.ª na ordem dos nascimentos, pelo seu 1.º casamento com Martinho de Boémia (Martim Behaim), comerciante de Nuremberga, na Alemanha, estabelecido em Portugal cerca de 1484, cujos escritos constituem uma fonte importante para o estudo dos primeiros capitães do Faial e Pico. De acordo com João de *Barros, este Martinho de Boémia teria introduzido em Portugal as tábuas náuticas do seu compatriota, o astrónomo Regiomontanus, e pertencido à Junta dos Matemáticos. Escreveu Da prima Inventione Guinee, relato importante sobre as rotas das mercadorias na costa da Guiné, mais rigoroso do que o que Cadamosto apurou sobre o mesmo tema.

Construiu, tendo-se inspirado no mapa de Martellus Germanus (1489), o globo mais antigo que se conhece, por volta do ano de 1490, em Nuremberga. Embora se trate de uma obra com muitas incorrecções, reflecte, no tocante à costa ocidental de África, o avanço dos conhecimentos geográficos propiciado pelas navegações portuguesas, marcando assim um ponto de transição entre o conhecimento antigo e o moderno.

Significativamente, depois de todos os seus serviços, e de ter sido encarregado por D. João II de missões diplomáticas junto do Imperador Maximiliano, Martinho de Boémia morreu muito pobre, num hospital de Lisboa, a 29.7.1507. Joana de Macedo, não obstante o seu passado algo controverso, contraiu segundas núpcias com D. Henrique de Noronha, (personagem de ascendência régia que exigiu à sogra compensações leoninas para efectivar o casamento), e morreu a 29.7.1507, sendo sepultada em campa rasa na igreja de S. Domingos. O seu casamento com Martinho de Boémia, muito mais velho, e muitas vezes ausente em viagem, não foi particularmente bem sucedido, embora dele tenha ficado um filho de que se perdeu o rasto no primeiro quartel do século XVI. Mas este mesmo filho perpetuou a memória da mãe portuguesa mandando colocar, em 1519, no coro da igreja de Santa Catarina, em Nuremberga, uma lápide comemorativa à direita do altar-mor. Nessa mesma cidade alemã, na praça Teresa, foi inaugurado pela edilidade, em 19.10.1890, um monumento a Martim Behaim.

O terceiro capitão-do-donatário, Manuel de Utra *Corte-Real, alcançou a capitania após a morte do pai, por carta de confirmação que lhe mandou passar D. João III em 15.6.1550. Foi obrigado a permanecer muito tempo na corte de Lisboa para obter essa sucessão, tendo protagonizado um episódio célebre, no decurso do qual se tornou bígamo contra a sua vontade ao ser obrigado a contrair 2.º casamento com D. Ângela de Meneses. A sucessão da capitania do Faial e Pico devia cair no filho varão primogénito do supracitado 3.º capitão, Jerónimo d?Utra Corte-Real, mas a demanda sobre a situação matrimonial do pai levou a que tivesse sido judicialmente considerado bastardo. A capitania foi julgada devoluta e acabou por sair desta família, sendo doada, por alvará de Fevereiro de 1553, a D. Álvaro de Castro, filho herdeiro de D. João de Castro, vice-rei da Índia. Manuel Lamas (Fev.2003)