(séculos XV-XIX) Surgido no século XIV, com a missão de ?correger?, isto é, corrigir os erros da justiça praticados à escala local, o corregedor foi considerado, pela historiografia de matriz oitocentista, como um dos pilares da centralização política que se teria operado em Portugal a partir do final da Idade Média. Dotado de uma ampla jurisdição, representando o poder régio junto dos poderes locais, senhores ou municípios, os corregedores seriam a guarda avançada do controlo gradual e efectivo da periferia pelo centro. Todavia, esta leitura tem vindo a ser corrigida por novas investigações, que salientam a existência de ?obstáculos fácticos? (Hespanha, 1992: 22) que tornavam difícil, se não impossível, a objectivação de um qualquer projecto centralizador. Nos Açores, a corregedoria foi criada em 1503, com sede em Angra, e até às reformas pombalinas de 1766, a única alteração na estrutura da comarca açoriana ocorreu no período 1534-1544, quando o arquipélago esteve dividido em duas corregedorias: uma, sediada em Angra, com jurisdição sobre as ilhas dos grupos central e ocidental; a outra, sediada em Ponta Delgada, abrangendo as ilhas de S. Miguel e de Santa Maria. D. João III, ao criar a comarca de Ponta Delgada, pretendeu optimizar a actuação dos seus agentes nas ilhas: ?a correisão de todas as Ilhas dos Asores era tal que hasi por causa do mar que muitas vezes a isso não dava luguar, como por ser mui grande para hum soo Corregedor, e elle por as ditas causas hi não podia admenistrar as cousas da justiça em todas as ditas Ilhas dos Asores como a cada hua era nesesario? (Arquivo dos Açores, 1981 [1882], IV: 52-54). No entanto, dez anos depois, o rei foi forçado a regressar ao modelo inicial de uma só corregedoria, face aos protestos do capitão de S. Miguel, Manuel da Câmara, que alegava constituir a presença do corregedor na ilha uma diminuição dos seus privilégios e um limite à sua jurisdição, tal como estavam contemplados na carta régia que doava ao capitão a jurisdição da ilha. D. João III decidiu a favor de Manuel da Câmara, determinando que, de ora em diante, só haveria uma corregedoria, abrangendo todas as ilhas. No caso específico de S. Miguel, o corregedor poderia fazer aí correição somente por três meses (de Janeiro a Março ou de Fevereiro a Abril) (Arquivo dos Açores, 1981 [1881], III: 337-338). Saliente-se este aspecto que nos parece demonstrativo dos problemas que a coroa enfrentava ao tentar objectivar uma determinada organização administrativa: o rei cedeu perante os privilégios de um senhor; quem os concedeu, porém, foi o próprio monarca. A estrutura jurídica da sociedade tradicional, orientada pelo princípio do privilégio, minava os objectivos da coroa. Apesar destas limitações, os corregedores procuravam aplicar as determinações régias, arbitrando conflitos e actuando de acordo com a alçada recebida. Comparando as alçadas dos corregedores Licenciado António de Macedo, de 1521, e Licenciado Gaspar Ferraz, de 1565, com a do corregedor Licenciado João Correia de Mesquita, de 1611, cujo regimento constituiu a base da actuação de todos os corregedores do arquipélago ao longo dos séculos XVII e XVIII, constatamos que existem algumas alterações de 1521 para 1565, mas que a jurisdição do corregedor permaneceu sensivelmente a mesma depois dessa data. As diferenças mais significativas a registar são: (a) nos casos crimes, o diploma de 1521 concedia alçada semelhante para escravos e plebeus, excepto no que tocava à obrigatoriedade de apelação e agravo para a instância superior no caso dos segundos, enquanto as alçadas de 1565 e 1611 adequavam a alçada à condição social dos criminosos; (b) nos feitos cíveis, o poder e alçada do corregedor em 1521 iam até à quantia de 20.000 reais, sem apelação nem agravo, situando-se essa quantia, em 1565 e 1611, nos 15.000 reais; (c) quanto a penas de degredo, a alçada de 1521 concedia ao corregedor o poder para degredar fidalgos, cavaleiros e escudeiros para as ?partes de além? até dez anos, podendo igualmente aplicar-lhes penas até trinta cruzados, mas os regimentos ulteriores hierarquizam as penas de acordo com a posição social dos culpados: até dois anos para os fidalgos, até quatro anos para os cavaleiros e escudeiros, até cinco anos para os oficiais mecânicos e peões que não fossem de soldada, até sete anos para os peões de soldada; (d) finalmente, face à criação do cargo de juiz de fora de Ponta Delgada em 1554, os regimentos de 1565 e 1611 referem expressamente que, nessa cidade, visto existir um juiz de fora, os corregedores apenas conheceriam acções novas e julgariam os casos dos poderosos e das demais pessoas indicadas nos respectivos regimentos. Acrescente-se ainda que todos os regimentos concediam ao corregedor dos Açores o poder de conhecer por acção nova as causas das cidades, vilas e lugares onde estivesse, num espaço de cinco léguas em redor (regimentos de 1565 e 1611), sem embargo das Ordenações determinarem que o não podia fazer. Além das limitações jurisdicionais dos corregedores já mencionadas, os regimentos estipulavam ainda que estes agentes do poder real não podiam tomar conhecimento dos feitos findos por sentença dos capitães ou seus ouvidores, excepto se tal fosse necessário para outros feitos. Por outro lado, de modo a evitar possíveis abusos de poder por parte dos oficiais régios, os regimentos proibiam que os feitos fossem levados de ilha para ilha, salvaguardando, contudo, a possibilidade dos corregedores o fazerem se poderosos locais estivessem envolvidos e os juizes locais não conseguissem aplicar a justiça. No período em análise, a situação mais grave em termos de excesso de jurisdição terá sido o confronto que opôs em meados do século XVII o desembargador Diogo Ribeiro de Macedo, em sindicância nas ilhas para investigar matérias no domínio da fiscalidade régia, ao provedor da Fazenda Real, Agostinho Borges de Sousa, que morreria na prisão (Rodrigues, 1994: 263-265). Este processo, que durou alguns anos, evidencia, em primeiro lugar, a impossibilidade da coroa controlar a acção dos seus agentes na periferia, não conseguindo, inclusive, devido à distância e à fragilidade dos canais de comunicação, impedir os conflitos entre oficiais da sua administração; em segundo lugar, mostra que, apesar dos limites doutrinais e jurisdicionais que condicionavam o alcance das magistraturas régias, a realidade podia ser outra, precisamente pela ausência de controlo da actuação dos agentes da coroa, mas também porque os comportamentos dos próprios magistrados de carreira assentavam, muitas vezes, em motivações decorrentes de estratégias individuais e das suas relações pessoais. Para começos do século XVIII, informa o Padre António Cordeiro que, até então, os corregedores dos Açores deslocavam-se poucas vezes à ilha do Pico e nunca tinham visitado as Flores e o Corvo, que constituíam um senhorio dos condes de Santa Cruz (Cordeiro, 1981: 480 e 486). Nas suas deslocações pelas ilhas, os corregedores e os seus colaboradores (escrivães, meirinhos) eram alojados e alimentados por conta dos orçamentos camarários, motivo que podia gerar tensões entre os representantes do poder local e os ministros régios. Com as reformas introduzidas pelos decretos de 2 de Agosto de 1766, no contexto da criação da capitania geral, o arquipélago tornou a ser dividido em duas corregedorias, uma com sede em Angra e outra com sede em Ponta Delgada, com jurisdições idênticas e que correspondiam à divisão ensaiada em 1534. Esta organização permaneceu em vigor até ao primeiro Liberalismo, quando o arquipélago foi dividido em três comarcas, pelo decreto de 2 de Fevereiro de 1822. José Damião Rodrigues (Fev.2001)
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