Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Vila Franca do Campo (concelho)

Urbanismo O «caso» histórico-urbanístico de Vila Franca do Campo é dos mais interessantes dos Açores, pois constitui uma situação histórica original, que não teve repetição nestas ilhas: a uma estrutura urbana quatrocentista, com significativo desenvolvimento, veio a sobrepôr-se uma outra, quinhentista, por força da destruição provocada pelo terramoto de 1522, cujo aluimento de terras soterrou praticamente na totalidade a povoação inicial.

Mesmo no caso da Praia da Vitória, na Terceira, que foi sujeita a sucessivos terramotos destruidores ao longo dos séculos, a estrutura urbana não foi apagada; ao contrário, em Vila Franca do Campo haveria toda uma arqueologia a desenvolver, pois os seus arruamentos, edifícios e espaços públicos da primeira instalação urbana terão desaparecido quase por completo. A povoação foi assim objecto de uma refundação, facto isolado e de grande importância no processo urbano de São Miguel. Assim mesmo, há ainda memória e vestígios da inicial instalação urbana e da localização de alguns dos edifícios públicos mais importantes que nos permitem tentar alguma hipotética reconstituição da malha original do povoado.

Como muitas outras vilas e cidades açóricas, Vila Franca do Campo apresenta uma implantação característica, junto à costa meridional de São Miguel, e acompanhando a linha de água da ribeira dos Pelames, desembocando finalmente na baía de abrigo, fronteira ao ilhéu homónimo do povoado.

Talvez o seu núcleo inicial tenha sido de tipo elementar, linear, desenvolvido ao longo da actual rua dos Oleiros, paralelamente à ribeira. Um largo a nordeste (actual Bento de Góis, contendo a primeira Matriz, de São Miguel Arcanjo), definiria a saída / entrada no povoado; a sudoeste, adentro de uma desaparecida baía, estaria o porto inicial, com a antiga alfândega (e, mais acima, a ermida de Santa Catarina, padroeira dos navegantes).

Haveria então, no dealbar do século XVI, instalações edificadas também a poente da ribeira, mas possivelmente esparsas, pré-urbanas: as Casas do Capitão (e talvez a casa da câmara e cadeia), e uma ermida (onde depois se erigiu a igreja de São Pedro), e a norte de tudo isto, no sopé do monte fatídico (porque se desmoronou sobre a vila em 1522), a primeira instalação Franciscana.

Depois da destruição de 1522, erigiu-se um novo centro urbano, desta feita essencialmente a poente da ribeira, e com uma malha mais ampla e complexa que o da povoação anterior, de estrutura reticulada e regular: designava-se por Vila Nova, e a sua área era pontuada por uma nova instalação franciscana, a poente, pela igreja de São Pedro, a norte, e por uma vasta praça, ao centro, erigida desde 1523.

Esta praça continha a nova Igreja Matriz, o Hospital e a Misericórdia (com igreja própria) e ainda, mais abaixo e a nascente, a Casa de Câmara ? todos estes edifícios abrindo sobre um mesmo espaço público conjunto. É excepcional o agrupamento de todas esta três funções num só largo ou praça (em Ponta Delgada e em Angra, por exemplo, a câmara corresponde a uma praça ou largo próprio, enquanto a Sé ou a Matriz se articulam com um outro) ? mas talvez pelo sentido de emergência pós-catástrofe, se tenha valorizado simbólica e funcionalmente esta definição de praça como «centro único», abrangente e de grande dimensão em relação à extensão da vila.

Outra explicação possível será talvez que a conformação actual deste vasto largo-praca, em «L», seja resultante, ao invés, da adaptação e do aproveitamento dos antigos espaços proto-urbanos, do tempo do arrabalde de antes de 1522, onde teria existido um singelo largo, virado a poente, entre as actuais Misericórdia e Matriz, e um outro, mais para nascente, que constitui o actual largo do Pelourinho, e só mais tarde tenha sido este espaço verdadeiramente unificado num amplo terreiro, abrindo-se então os dois largos referidos, inicialmente apartados, para um só espaço agregador ? o do actual jardim municipal. Isto explicaria a forma irregular, em «L», daquele vasto terreiro.

O velho espaço urbano do lado oriental da ribeira, remanescente à catástrofe quinhentista, nunca deve ter sido totalmente recuperado do desastre, pois as funções que nele encontramos fixadas nos séculos posteriores são secundárias ou complementares, no conjunto da urbe; em todo o caso, foi ali reocupado o lugar da antiga Matriz, com a nova capela e o convento das clarissas de Santo André. E a área, em característico destino de sector urbano empobrecido, passou a constituir um espaço de interface com as áreas mais populares, piscatórias e dos arrabaldes rurais (e mais recentemente, sendo suporte das funções de memória colectiva ? um museu e um centro cultural).

No conjunto da nova urbe pós-1522, desenvolvida nos séculos seguintes, pode ler-se a definição de uma rua Direita estruturante, de atravessamento global da povoação, no sentido poente-nascente: define-se essa rua pelo eixo desde o Convento dos Franciscanos (avenida da Liberdade), passando a São Pedro, percorrendo a sequência central da Misericórdia / Matriz / Mercado / Correios (rua Teófilo Braga), e finalmente o antigo largo de Santo André, agora Bento de Góis, com a saída para leste, pela via do Solar dos Botelhos.

Para sul desta rua Direita, e até ao mar, ficam os arruamentos da Vila Nova, até a grande praça, e depois até à antiga ribeira. As ruas perpendiculares à costa (e portanto à rua Direita) são: rua Padre Manuel José Pires, rua Padre Luciano Andrade, rua de São Pedro, rua de Nossa Senhora da Vitória, rua do Corpo Santo, rua Dr. Augusto Simas ? esta enfiada ao Clube Naval, sobranceiro à costa e instalado em antiga fortificação ? e rua do Visconde; e os arruamentos sensivelmente paralelos à costa são: rua Nossa Senhora da Natividade, rua Gonçalo Velho, ruas C. Freitas / J. V. Silveira Moniz, ruas Padre Manuel Ernesto Ferreira / Simões de Almeida, e rua do Bago.

Quanto às travessas de Cima e de Baixo, na área a oriente da ribeira, poderão constituir vestígios da antiga malha urbana inicial, que, sendo provavelmente de expressão linear pela rua dos Oleiros, pode ter tido pequenas vias secundárias de ligação, como estas duas.

Ainda quanto ao largo Infante Dom Henrique e à rua Vasco da Silveira, situado aquele perto e esta junto ao desembocar da ribeira, sendo mais recentes, devem corresponder à urbanização mais moderna dos terrenos resultantes do derrame de terras da catástrofe quinhentista que anulando a linha de costa original, em forma de enseada, aqui certamente antes existente, inviabilizou o primeiro porto. A resultante deste processo deve ser a linha costeira actual, muito recta e pouco acolhedora (daí a recente marina ter sido implantada à ilharga, a nascente). José Manuel Fernandes

 

Arquitectura Na vila podem destacar-se alguns exemplos notáveis de arquitectura religiosa, com alguns importantes edifícios, com significado arquitectónico e histórico, mesmo se entendido ao nível geral do arquipélago:

                - a Igreja de São Miguel Arcanjo, reconstruída depois de 1522, dentro de um gosto tradicionalista, que evoca formas góticas do século XV. Possui fachada e torre basálticas, de desenho simples, aquela com portal ogival. No interior, de três naves, destaca-se a capela-mor, com o altar em talha dourada, com as superfícies laterais azulejadas. Abaixo da matriz, articulando esta (e o seu escadório), com o conjunto da Misericórdia e mais abaixo, com a Casa da Câmara, estende-se desde 1836 o jardim municipal Antero de Quental, antigo de D. Luís I.

                - o Convento de S. Francisco, quinhentista (1525), ampliado no século XVIII (1760), possui um qualificado claustro, e uma capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário, com talha dourada e as originais figuras de sereias. Foi recuperado nos anos 1990 e é hoje um estabelecimento hoteleiro de turismo de habitação com exposição de algumas peças de valor artístico. Fronteiro ao convento abre-se o singelo mas gracioso jardim de António da Silva Cabral, implantado em 1899-1901.

                - o Convento de Santo André, implantado no largo Bento de Góis, com uma monumental «torre de clausura», de janelas protegidas, característica desta tipologia em São Miguel (como a torre das clarissas de Ponta Delgada). A igreja inserida no convento foi fundada em 1567 e possui elementos barrocos e neo-clássicos. A fachada foi reconstruída num gosto neo-medievo pelos anos de 1940. De nave única, com uma grade de pau-santo e púlpito, altares de talha dourada, frescos revestindo paredes e abóbada, grades metálicas nos coros, sacristia com arcaz setescentista em pau-santo. O órgão de tubos foi construído em Lisboa, em 1828. Em frente, a praça Bento de Góis foi ajardinada e iluminada em 1901, recebendo a estátua homónima em 1907 (por Simões de Almeida), depois substituída por outra em 1962.

                - a Igreja de São Pedro, setecentista (1746-1758), foi edificada no local de antiga ermida quatrocentista, e exibe uma notável fachada com pórtico de desenho barroquizante, integrando a escultura quinhentista de São Pedro, em Pedra de Ançã. O interior é de planta octogonal, como a igreja homónima de Ponta Delgada, e algumas, raras, igrejas do continente e do Brasil da mesma época.

                - o edifício da Santa Casa da Misericórdia, com a igreja do Espírito Santo e o hospital, dos séculos XVI a VXVIII. A igreja recebeu um novo portal, o actual, e um novo retábulo para a capela-mor, este por decisão de 1616, sofrendo obras de transformação em 1719.

                - a ermida de Santa Catarina, fronteira ao largo do mesmo nome, junto à marginal, originária do século XVI, reconstruída várias vezes (1696-1707, 1811-1822), e com a vizinhança da estátua erigida ao Infante Dom Henrique, por Simões de Almeida (sobrinho), inaugurada em 1932.

                - a Ermida de Nossa Senhora da Paz, no alto de monte sobranceiro à vila, originária do século XVI e reconstruída em 1753-1764, com um longo escadório fronteiro (este já de 1967-1969).

Em termos de arquitectura civil, na vila, o destaque vai para o edifício da Câmara Municipal. Data de 1777 e insere-se na tipologia mais corrente para este tipo de arquitectura cívica: fachada com um alpendre saliente a que se acede por dupla escadaria exterior, como nas construções afins de Ribeira Grande, de Ponta Delgada ou de Lagoa. Porém foi muito alterado e modernizado no século XIX, perdendo as escadarias a balaustrada de pedra, as janelas as suas sacadas originais, a cimalha a sua balaustrada em pedra. No interior havia uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. A torre municipal foi alteada, para colocação do relógio. Do lado sul havia um pelourinho no pequeno largo fronteiro.

Na trama do núcleo histórico de Vila Franca do Campo, destacam-se igualmente algumas casas solarengas, com elementos de influência estilística erudita:

                - o edifício de habitação de dois pisos, com óculo decorativo em pedra, sito na travessa de Nossa Senhora da Natividade (ficha n.º 123 do Arquivo da Arquitectura Popular dos Açores, base de dados, Associação dos Arquitectos Portugueses, 1993).

                - o edifício de dois pisos com lintéis decorativos e óculos na fachada, fronteiro ao jardim municipal da praça central, do lado da Câmara Municipal.

                - o edifício solarengo, com dois pisos e volumoso torreão, implantado no plano recuado da fachada.

A arquitectura do Romantismo e do século XX também apresenta alguns exemplos característicos em Vila Franca do Campo:

                - o solar do Conde do Botelho, edificado em meados de Oitocentos, com um amplo torreão, central e recuado, servido de mirante sobre o mar.

                - o mercado municipal, abrindo sobre a rua principal, com espaço de pátio central, arborizado, e uma área recuperada e modernizada na envolvente.

- na rua principal, ao lado no pátio do mercado, existe uma invulgar habitação com elementos do tipo do «chalet» na sua cobertura: um corpo de mansarda com o tema clássico da «serliana», em madeira; e as traseiras com elementos de evocação «arte nova».

- o antigo Mercado do Peixe, aberto em 1903, fronteiro a uma nova rua marginal ao cais, com a sua arquitectura de gosto também «achalezado», apresentando as sancas de remate da cobertura em madeira trabalhada.

                - ao fundo de uma alameda, a norte da trama urbana da vila, existe um típico «chalet», com o seu corpo central sobrelevado, cobrindo os vãos geminados (próprios da Arte Nova), e com as duas águas da cobertura muito inclinadas, rematadas por sanqueado em madeira trabalhada.

                - o Teatro Vilafranquense, inaugurado em 1933, e totalmente remodelado em 1966.

Como espaços restaurados ou adaptados no século XX, podem mencionar-se o Centro de Formação e Animação Cultural, instalado em edificação antiga no largo Bento de Góis, em 1991, e, na rua Visconde de Botelho, o Museu da Vila, a funcionar desde 1981.

Em termos de arqueologia e arquitectura industrial, devem mencionar-se as antigas centrais eléctricas, de força hídrica, edificadas no lugar da Praia: a primeira, de 1900, a segunda de 1903, e a terceira, de 1911 ? esta em edificação que foi recuperada e transformada em núcleo do Museu de Vila Franca, em 1990.

Como construção original, representativa da arquitectura revivalista, de inspiração neo-medieval, do século XX, aplicada sobre um antigo solar rural, destaca-se, no concelho, o Solar dos Botelhos da Senhora da Vida, na Ribeira da Abelheira, em Ponta Garça. Aposta à ampla fachada original da residência, erigiu-se uma torre e outros elementos cénicos de sabor neo-românico e gótico, cerca dos anos de 1940. De referir também um padrão, da autoria de Manuel António de *Vasconcelos na mesma propriedade.

Pelo território concelhio, a casa popular tradicional, de feição urbana, com a sua planta de compartimentação integrada, apresenta com frequência as pequenas janelas da «falsa», muito características de São Miguel: numa frente térrea, de janela-porta-janela, abrem-se duas janelinhas de pequena dimensão, colocadas sobre as duas janelas de cada lado da porta.

Na arquitectura religiosa do restante território concelhio, podem destacar-se:

                - a igreja de São Lázaro de Água D?Alto, dos séculos XVI-XVIII, ampliada em 1833-55, quando adquiriu a feição actual. Existe um curioso fontanário, no adro fronteiro, de 1865.

            - a igreja de Nossa Senhora da Piedade, em Ponta Garça, construção de 1846-1869, restaurada em 1924-1931.

Em termos de infra-estruturas, recorde-se o farol de Ponta Garça, construção moderna de 1957, contemporânea e com desenho análogo ao dos faróis do Carapacho (Graciosa), do Cintrão (Ribeira Grande) e dos Rosais (São Jorge). José Manuel Fernandes

Bibl. Açores / Publiçor / Guia Turístico (1998-99) (18a. Edição). S.l., Publiçor. Andrade, T. M. (1973), O Cicerone de Vila Franca. Notas Históricas da Antiga Capital de S. Miguel. Vila Franca do Campo, Câmara Municipal de Vila Franca do Campo [2.a edição, 1986, 3.a edição, 1994]. Arquivo da Arquitectura Popular dos Açores (1993), base de dados, Associação dos Arquitectos Portugueses. IPIA / Inventário do Património Imóvel dos Açores, coordenação pelo IAC / Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo, 1998-2007, em curso. Martins, R. S. (s.d.), Vila Franca do Campo. Ponta Delgada, Éter. Monterey, G. (1981), Santa Maria e São Miguel As Duas Ilhas do Oriente. Porto, Ed. do Autor.