Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Sena Freitas, José Joaquim de

[N. Ponta Delgada, 21.7.1840 ? m. Rio de Janeiro, 21.12.1913] Escritor e polemista, com extensa produção ensaística e jornalística. A sua vasta obra abrange as áreas da literatura, filosofia, teologia, pedagogia, parenética, combatendo em todas estas frentes em defesa de princípios e ideais inspirados nos Evangelhos e no magistério da Igreja. Era filho de Bernardino José de Sena *Freitas e fez os seus primeiros estudos em Ponta Delgada. Aos 15 anos, acompanha o pai, que regressa ao continente, e entra no seminário de Santarém, onde descobre a vocação missionária. Ingressa, aos 20 anos, no seminário da Congregação da Missão, em Paris, onde estudou Teologia e foi ordenado sacerdote, em 1865. Os membros desta Congregação, também conhecidos por Lazaristas ou Vicentinos, dedicavam-se à evangelização dos pobres e à formação do clero. Assim, vai como missionário para o Brasil, distinguindo-se como professor do Seminário dos Lazaristas de Caraça (Minas Gerais) e como publicista, participando nos debates que se travavam em torno das novas ideias propaladas pelas correntes científicas, filosóficas e políticas, ligadas ao materialismo, positivismo, liberalismo, evolucionismo, que haviam sido proscritas pelo Syllabus, promulgado por Pio IX, em 1864. Estes e outros temas, como o combate à influência da maçonaria, as relações Igreja-Estado, o anticlericalismo, a dignificação do clero, a reforma do ensino, a exaltação de grandes causas e personalidades, a defesa dos valores tradicionais da moral e do catolicismo, marcaram o seu percurso de vida, também em Portugal, aonde regressou, no verão de 1872, para leccionar no Colégio de Santa Quitéria, em Felgueiras.

No início dos anos oitenta viaja para Inglaterra e Irlanda, onde ouviu, em Londres, as lições de Thomas Huxley e desenvolveu estudos na área das ciências da natureza. De regresso a Portugal, volta ao Brasil, em 1885, onde retoma a actividade docente, nomeadamente, no Seminário de São Paulo e, mais tarde, na direcção de um colégio com o seu nome, em Jundiaí. Mantém intensa intervenção nos jornais, sendo deste período a polémica obra A Autópsia do Padre Eterno, em que submete a forte crítica a conhecida sátira anticlerical de Guerra Junqueiro, que havia sido publicada no Brasil, em 1885, um ano depois de ter aparecido em Portugal. Sem ignorar os momentos negativos da história da Igreja, marcados por erros, vícios e injustiças, Sena Freitas lembra o seu papel cultural e civilizacional em prol da emancipação e dignificação do homem. A nobreza dos princípios não poderá nunca ser abalada pelas vicissitudes que a história lhes inflige. Por esta razão, argumenta, da mesma forma que os erros e os desvios que a liberdade consente não poderão servir de justificação para recusar ou demover os esforços dos que procuram a sua afirmação, também as sombras da história não poderão apagar os focos de irradiação que a Igreja projectou, pela difusão da sua mensagem e a acção de destacadas personalidades que serviram a sociedade e o conhecimento.

O interesse de Sena Freitas pelas ciências cumpria um propósito eminentemente pastoral, que em seu juízo deveria fazer parte integrante da formação do clero. Os importantes avanços que as ciências conheciam requeriam uma educação eclesiástica não apenas preocupada com o cultivo da virtude mas também com o estudo actualizado dos «conhecimentos humanos modernos». Este importante equipamento permitiria desfazer, de forma criteriosa e não meramente apologética, os erros e ilusões propalados pelas correntes filosóficas que, como o positivismo, situavam as fronteiras da razão humana no conhecimento científico. Certamente que o positivismo não errava ao exigir rigor e precisão nas noções que utiliza e ao apoiar a veracidade do conhecimento científico na observação. Da mesma forma, não tem dificuldade em admitir que é por meio da aplicação do método experimental que a ciência moderna consegue alcançar extraordinários resultados. Todavia, nem todo o conhecimento poderá estar sujeito à verificação empírica. O positivismo peca precisamente pela visão redutora que apresenta da ciência, e Sena Freitas evoca a autoridade de vários cientistas que não só recusaram impor à razão os limites da experiência, mas reconheceram a importância da metafísica.

O vício inaceitável do positivismo foi ter imposto o procedimento utilizado nas ciências da natureza a todo o tipo de conhecimento, excluindo, nesta base, tudo o que não fosse sujeito à observação dos sentidos, como Deus e a alma humana. Ora, argumenta Sena Freitas, mesmo no domínio das ciências, será abusivo circunscrevê-lo a um simples resultado do método experimental. O caso das matemáticas é particularmente exemplificativo, em que o rumo da sua progressão depende apenas dos axiomas, postulados e definições admitidos. Também as concepções materialistas sobre a eternidade da matéria, a natureza da força e do movimento, as relações entre a alma e o cérebro não se justificam experimentalmente, mas relevam de opções de teor metafísico que não têm correlato na observação. Nenhuma observação permitirá identificar que a força e o movimento inerentes à matéria sejam propriedades que lhe sejam essenciais ou procedam a partir dela. De igual modo, nenhuma prova poderá ser apresentada para mostrar que a matéria constitui por si o princípio explicativo da vida. Esta não se poderá conceber ao nível da acção das forças físicas e químicas, não havendo ligação visível que permita localizar a passagem da não-vida à vida. Também a teoria evolucionista dos seres vivos não explica como é que as células germinativas, tão semelhantes em todos os animais, dão origem, por um longo processo de diferenciação, a indivíduos de espécies tão diferentes. Só a intencionalidade dum plano inteligente, superior à matéria, poderá explicar que a forma específica de cada animal, com complexidade distinta, provenha de células germinais que, segundo pensava, eram idênticas em todos os seres vivos. Todo o desenvolvimento postula a necessária intervenção duma acção de ordem transcendente, que não se compreende pelas razões que a ciência domina, mas pelas que a metafísica pode conhecer.

Enquanto permanecer exclusivamente dependente da observação e se limitar a uma metodologia indutiva, o positivismo incorre, embora em sentido contrário, no mesmo absurdo dos autores medievais, que pretendiam, abusivamente, reduzir todo o conhecimento à especulação metafísica, privilegiando o conhecimento a priori em detrimento do que se apoiava na observação. Não somente a observação não poderá por si só acreditar o conhecimento científico da realidade, como também a ciência não poderá ser considerada o patamar último da inteligibilidade do mundo e do homem.

Em matéria de ensino, combateu as iniciativas que pretendiam atribuir ao Estado o seu exercício exclusivo e as tentativas para impedirem que as instituições religiosas o ministrassem. Ao mesmo tempo, preconizou a adopção duma prática pedagógica consentânea com o desenvolvimento intelectual dos alunos e um plano de estudos que aliasse a formação intelectual à formação moral. Bateu-se denodadamente pela formação dum clero instruído e virtuoso, que considerava vital para que a Igreja pudesse reassumir o seu importante papel na história do país.

Sena Freitas saiu dos Lazaristas, uma primeira vez, em 1874, e definitivamente em 1882, embora a ligação às pessoas e o compromisso com os ideais da Ordem tivessem permanecido «de pé», como escreveu em «O meu crucifixo», Lutas da Pena. Cultivou uma profunda relação de amizade e admiração por Camilo, tendo publicado, em 1887, o Perfil de Camilo Castelo Branco. Fundou em Guimarães o jornal Progresso Católico, prefaciou e traduziu vários livros e efectuou muitas viagens, cujas impressões deixou em diversas publicações. Em 1896 foi nomeado cónego da Sé Patriarcal de Lisboa e, no ano seguinte, visitou a sua terra natal, onde foi calorosamente recebido, segundo a descrição da imprensa da época, e pregou na festa do Coração de Jesus, na Igreja de S. José. Os acontecimentos de 5 de Outubro fizeram-no regressar ao Brasil onde veio a falecer, quando escrevia a sua autobiografia, que ficou incompleta. Os seus restos mortais repousam no cemitério de S. Joaquim, de Ponta Delgada, para onde foram trasladados em 1925, por iniciativa duma campanha promovida por José da Mota Vieira, no Diário dos Açores. José Luís Brandão da Luz

Obras Principais. (Além das referidas): (1875), Os Lazaristas pelo ?Lazarista? Sr. Enes. Porto, Livraria Central de J. E. da Costa Mesquita. (1877), Escritos Católicos de Ontem. Guimarães, Livraria Internacional de Teixeira de Freitas. (1879), Crítica à Crítica. Porto, Livraria Portuense de Manuel Malheiro Editor. (1881), Dia-a-Dia de um Espírito Cristão. Guimarães, Livraria Internacional de Teixeira de Freitas. (1883), O Morto Imortal ou Esboço Literário de Louis Veuillot. Lisboa, Typ. Universal. (1884), No Presbitério e no Templo. 2 vols., 2.ª ed., Lisboa, Lallemennt Frères Imprensa. (1888), Observações Críticas e Descrições de Viagens. Crítica. vol. I, Campinas, Tipografia Livro Azul. (1891), Observações Críticas e Descrições de Viagens. Entre Mares e Lares. vol. II, Rio de Janeiro, Companhia Impressora. (1893), Processo do Positivismo. Rio de Janeiro, L?Express Cateysson & C. (1901), Lutas da Pena. vol. I, Lisboa, Tipografia Universal. (1902), Lutas da Pena. vol. II, Lisboa, Tipografia da Casa Católica. (1903), Por Água e Terra. Lisboa, Empresa da História de Portugal. (1904), Estudo Sintético sobre o Positivismo de Augusto Comte. Lisboa, Livraria Correia Pinto. (1905-1906), A Palavra do Semeador. 3 vols., Lisboa, Parceria António Maria Pereira. (1908), Ao Veio do Tempo. Ideias, Homens e Factos. Lisboa, Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora. (1909), Stambul ou Itinerário duma Viagem a Constantinopla. Nova ed. 2005, São Paulo, Arké Editora. (1909), A Alta Educação do Padre. Nova ed. 2003, Lisboa, Roma Editora. (1910), Historicidade da Existência Humana de Jesus contra Emílio Bossi. Lisboa, Parceria António Maria Pereira, Livraria Editora.

 

Bibl. Abreu, L. M. (2006), O antipositivismo apologético de Sena Freitas. In José Luís Brandão da Luz (org.), Caminhos do Pensamento: Estudos em Homenagem ao Professor José Enes. Lisboa, Edições Colibri/Universidade dos Açores: 543-558. Anglin, J. H. (1968), Padre Sena Freitas. Antologia. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada. Figueiredo, A. (1926), O Padre Sena Freitas. Lisboa, Livrarias Aillaud e Bertrand. Gomes, A. C. C. C. e Fernandes, J. M. C. (2003), Inventário do ?Espólio Sena Freitas? da Biblioteca e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Insulana, Ponta Delgada, 59: 295-336. Luz, D. (1940), Padre Sena Freitas, homem da Igreja e do seu tempo. Lumen, IV: 425-436 e 551-563. Id. (1940), Fisionomia intelectual e moral de Sena Freitas. Lumen, V: 435-447. Id. (1947), Sena Freitas, João Gaspar Simões (dir.), Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XIX. Lisboa, Ed. Ática, I: 517-543. Neves, M. (1967), Guerra Junqueiro e o Padre Sena Freitas. In As Grandes Polémicas Portuguesas. Lisboa, Ed. Verbo, II: 319-350. Id. (1975), A Autobiografia do P. Sena Freitas. Angra do Heroísmo, sep. da Atlântida. Carreiro, M. (1966), Camilo e Sena Freitas. Ponta Delgada, Ed. do autor. Pinharanda Gomes, J. (1991), A crítica do positivismo pelo Padre Sena Freitas. Revista de Cultura Açoriana, Lisboa: 33-44.