Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Pico (ilha do)

Geologia A ilha do Pico apresenta forma alongada na direcção WNW-ESE, mais larga a oeste e estreitando para oriente. O comprimento da ilha é de 46 km, medidos entre a vila da Madalena e a Ponta da ilha, e a largura máxima (15,8 km) verifica-se entre a povoação de Arcos na costa norte e S. Mateus a sul. A área planificada é de 547 km2. O ponto culminante situa-se na Ponta do Pico (ou Piquinho), no alto do vulcão do Pico, à cota 2351 m. Este local é a terceira maior altitude do Atlântico, depois do Teide, nas Canárias, e do vulcão do Fogo, no arquipélago de Cabo Verde.

No que respeita a geomorfologia, a ilha pode ser dividida em três regiões fisiográficas: o Vulcão do Pico, a Região Oriental e o Relevo do Topo. A morfologia destas regiões encontra-se intimamente ligada às características do vulcanismo que as edificou. A tectónica controla essencialmente a forma global da ilha, alongada na direcção WNW-ESE, e contribui para algumas formas de pormenor no interior de cada uma das regiões definidas.

A unidade morfológica do Vulcão do Pico corresponde ao relevo dominante da ilha. Trata-se de um edifício vulcânico com 14 km de raio máximo ao nível do mar, apresentando uma cratera-poço no topo. A depressão, quase perfeitamente circular, tem 600 m de diâmetro e as suas paredes, cortadas verticalmente em derrames pahoehoe, apresentam altura máxima de 22 m. O ponto mais alto do rebordo situa-se no lado SW à cota 2252 m. O fundo da cratera encontra-se parcialmente preenchido por um cone muito íngreme formado por um empilhamento de lavas em tripa. O cone eleva-se 120 m da cratera, acrescentando, assim, mais 100 m à altura do edifício vulcânico. O fundo da cratera está cortado por uma fractura, com orientação WSW-ENE, que emitiu uma pequena quantidade de bagacina; aqueles piroclastos encontram-se quase exclusivamente a NW da fractura indicando ventos de SE durante a erupção. A fractura continua no exterior da cratera constituindo uma das muitas estruturas radiais do vulcão. A parede da cratera apenas se encontra preservada nos lados sul e oeste; a norte e leste a porção exterior à fractura circular desmoronou-se pelas vertentes do Pico devido ao forte declive da parte superior do vulcão. As próprias encostas sofrem desmoronamentos frequentes, originando depósitos de vertente volumosos que cobrem parte significativa das encostas norte, leste e sueste, entre as cotas 1100 e 2000 m. Aos depósitos do lado norte é dado o nome de Areeiro de Santa Luzia, o que se situa a leste chama-se Quebrada do Norte e os do lado sul são designados por Quebrada do Curral e Quebrada da Terça. O edifício vulcânico está descentrado relativamente à área que ocupa, encontrando-se o seu cume a SE do centro geométrico daquela. Assim, o raio, medido entre o Piquinho e o litoral, varia entre 14 km (Piquinho-Madalena) e 4,5 km (Piquinho-Porto da Prainha). Em consequência, as encostas são assimétricas, mais íngremes do lado sul que a oeste e a norte. As vertentes atingem 36º de inclinação máxima e declive médio de 27º sobre Santa Catarina. Em toda a área do Vulcão do Pico o solo é inexistente; à superfície afloram derrames e escórias provenientes do topo do vulcão e de numerosos cones adventícios alinhados sobre estruturas radiais. O terreno, extraordinariamente pedregoso, encontra-se dividido, nas zonas mais baixas, em pequenas parcelas muradas, os currais ou curraletes, onde se planta a vinha e algumas árvores de fruto. Alguns curraletes são reservados para acumular os blocos de maiores dimensões, retirados das outras parcelas, dando origem a autênticas pirâmides de pedra que chegam a atingir a dezena de metros de altura. A estes amontoados dá, a população, o nome de maroiços.

A drenagem superficial é praticamente inexistente na região. As poucas linhas de água têm carácter efémero. A maior parte da precipitação perde-se em profundidade através da fracturação dos derrames lávicos e escoa-se por tubos de lava, surgindo sob a forma de olhos de água, no litoral. A arquitectura das casas tradicionais do Pico reflecte a ausência de cursos de água permanentes através da presença constante de cisternas para aproveitamento da água da chuva. Refira-se que, no início do povoamento, as poucas ribeiras que conservavam alguma água nos seus leitos durante a época seca eram protegidas por legislação especial. Machado (1936) regista uma postura camarária de 25 de Fevereiro de 1502 que estipulava que de hoje por diante ficasse coimeira a ribeira de Fernando Álvares, da ponte nova para cima até ao lugar do Salto. Chamava-se coimeira a ribeira, ou parte dela, onde era proibido lavar, sob pena de coima, para não conspurcar as águas. Esta decisão foi confirmada por alvará do capitão-donatário do Faial e Pico, que determinava: Jós D?utra ettª, mando que nenhua pessoa de qualquer estado, & condição que seja não lave da ponte de Fernando Alz pª cima pª o salto ... sob pena de cada vez que for achado pague duzentos reis pª o conselho, feito aos 24 de Mayo era de 1502. Jós D?utra. Esta legislação, que se refere à ribeira de Fernando Álvares, hoje chamada da Burra, bem como outras leis referentes ao abate de árvores de madeira valiosa, mostram, nos homens de quinhentos, consciência da necessidade de protecção do ambiente e dos recursos naturais, tanto ou mais elevada que na actualidade.

A Região Oriental ocupa a quase totalidade dos terços central e oriental da ilha do Pico. A sua forma geral é alongada na direcção WNW-ESE, estreitando gradualmente para leste. Na transversal S. Roque-Mistério da Silveira tem 11,5 km de largura, enquanto que no meridiano de Santo Amaro esta não ultrapassa os 6 km; até à Piedade a sua largura, da ordem dos 5 km, é quase constante. O extremo leste da região apresenta uma forma grosseiramente triangular com vértice na Ponta da Ilha. Longitudinalmente a região estende-se por cerca de 28 km. Em perfil transversal definem-se três troços principais: uma superfície planáltica e as vertentes norte e sul.

Aquela região formou-se à custa de actividade vulcânica fissural, de natureza basáltica, ao longo de um sistema de falhas WNW-ESE a E-W. Assim, na área planáltica, desde a base oriental do vulcão do Pico até à Ponta da Ilha, a morfologia é caracterizada por alinhamentos de cones havaianos-estrombolianos, rodeados pelas respectivas escoadas. Em parte significativa da região planáltica, a drenagem é endorreica, processando-se em direcção a depressões fechadas que resultam da interposição de escarpas de falha, de aglomerados de cones vulcânicos e de crateras. Formaram-se, assim, numerosas lagoas: desde a Lagoa do Capitão, a oeste, até ao lago de cratera do Cabeço do Lopes, existem, com carácter mais ou menos permanente, vinte lagoas. As principais, pela sua dimensão, são as do Capitão, do Caiado, da Rosada e do Peixinho. A Lagoa do Ilhéu já não existe, tendo sido capturada e esvaziada pelo recuo da cabeceira da ribeira das Areias.

O relevo do Topo localiza-se aproximadamente no centro da costa meridional do Pico, sobranceiro à vila das Lajes, dando origem a uma saliência no traçado do litoral que, de outro modo, se apresentaria quase rectilíneo. Esta unidade morfológica é limitada a oeste pela ribeira do Caminho da Pedra, a norte pelos relevos envolventes da Caldeira de Santa Bárbara e a oriente pela ribeira dos Moinhos. O relevo do Topo, que constitui uma forma anómala na unidade morfológica desta parte da ilha, corresponde aos restos de um edifício vulcânico anterior à actividade fissural que edificou a Região Oriental. O vulcão, possivelmente um vulcão escudo, encontra-se actualmente muito destruído. Entre as numerosas falhas de direcção WNW-ESSE que atravessam aquele relevo, a falha do Topo é a mais importante.

Os principais estudos com referência à estratigrafia do Pico são os de Zbyszewski et al. (1962 e 1963a, b, c e d), Machado e Forjaz (1968), Chovelon (1982), Forjaz et al. (1990), Madeira (1998) e Nunes (1999). Féraud e colaboradores (1980) apresentam um conjunto de datações pelo método do K/Ar para todas as ilhas do arquipélago, incluindo a do Pico. Daqueles trabalhos conclui-se que a parte emersa da ilha é composta por dois vulcões centrais (poligénicos) e uma zona vulcânica fissural. O edifício mais antigo, o vulcão-escudo do Topo, encontra-se parcialmente desmantelado por deslizamentos, deslocado por falhas, e coberto por produtos vulcânicos mais modernos. É formado por derrames de lavas basálticas de tendência ancaramítica (basaltos olivínicos ou contendo augite e olivina), agrupadas na unidade estratigráfica do Complexo Vulcânico das Lajes; as datações K/Ar disponíveis não são esclarecedoras pois indicam idades de 250 40 ka (ka ? milhares de anos; Baubron, 1981, in Chovelon, 1982) e < 37 ka (Féraud et al., 1980).

A unidade intermédia, o Complexo Vulcânico da Calheta do Nesquim, é constituída pelos produtos de vulcanismo fissural basáltico representado por alinhamentos de cones havaiano-estrombolianos e respectivos derrames lávicos. Esta actividade ocorreu ao longo de falhas WNW-ESE a E-W, originando a parte alongada da ilha do Pico anterior à edificação do vulcão central; nesta fase o Pico constituía uma ilha alongada semelhante à de S. Jorge. Actualmente, esta unidade aflora num conjunto de manchas, isoladas pelos derrames modernos do Complexo Vulcânico da Madalena, na região central da ilha. Os produtos do Complexo Vulcânico da Calheta do Nesquim têm natureza predominantemente basáltica e são rochas em geral porfíricas com fenocristais de piroxena e olivina mais comuns que os de plagioclase, que são raros. Localmente são cortados por filões havaíticos e mugearíticos. Três datações pelo método do K/Ar, publicadas para esta unidade, variam entre 270 ± 150 ka e < 25 ka (Féraud et al., 1980; Chovelon, 1982).

O Complexo Vulcânico da Madalena é a unidade mais recente da estratigrafia da ilha do Pico, compreendendo toda a actividade eruptiva moderna que está na origem da edificação do estrato-vulcão do Pico e dos episódios recentes ao longo da zona fissural a oriente daquele edifício, incluindo as erupções históricas de 1562, 1718, 1720 e 1963 (veja-se erupções históricas); a morfologia muito fresca das regiões onde aflora esta unidade sugere idade holocénica, o que é confirmado pelas datações de radiocarbono disponíveis que variam entre 5,250 ± 70 anos BP e 625 ± 65 anos BP (BP ? before present; Madeira, 1998; Nunes, 1999). Os produtos vulcânicos emitidos são predominantemente basálticos, embora ocorram lavas mais evoluídas de composição havaítica de que são exemplo os havaítos com anfíbola do Mistério de Santa Luzia (erupção de 1718). Mais de 90% das lavas são porfíricas, predominando as que apresentam cristais de piroxena, olivina e plagioclase, seguindo-se as que têm fenocristais de piroxena e olivina, e olivina mais plagioclase. Estruturalmente esta unidade pode dividir-se em duas sub-unidades: os membros do Vulcão do Pico e da Zona Fissural Oriental. O Vulcão do Pico é um estrato-vulcão apresentando uma cratera-poço no topo. No interior da cratera foi edificado um pequeno mas íngreme cone de lava, o Piquinho. Nas suas vertentes encontram-se vários alinhamentos radiais de cones adventícios havaiano-estrombolianos e surtsianos (cone dos ilhéus da Madalena e Cabeço Debaixo da Rocha). A Zona Fissural Oriental é composta por alinhamentos de cones de escórias havaiano/estrombolianos e respectivas escoadas lávicas; estas correram sobre arribas litorais, talhadas em produtos das unidades mais antigas, formando deltas de lava (fajãs lávicas). O número de cones, hornitos e bocas efusivas pertencentes a esta unidade ultrapassa a centena, apresentando no seu conjunto mais de 300 crateras. Alguns cones possuem crateras múltiplas embutidas umas nas outras, noutros casos as crateras formam alinhamentos.

A estrutura tectónica da ilha do Pico é caracterizada por dois sistemas de falhas. As estruturas principais, orientadas WNW-ESE, são as falhas normais direitas da Lagoa do Capitão e do Topo, as quais convergem progressivamente para leste; as duas falhas constituem uma estrutura em graben, mais estreita e menos profunda que o Graben de Pedro Miguel no Faial. A zona de falha da Lagoa do Capitão estende-se na direcção WNW-ESE por, pelo menos, 30 km nas áreas central e oriental da ilha. Apresenta geometria complexa em planta e um conjunto de escarpas de falha viradas a sul, ao longo de 9 km que atingem uma altura máxima de 20 m. Para leste as escarpas desaparecem sob cones de escória recentes, alguns dos quais formados na erupção de 1562-1563, mas o traço de falha está marcado por alinhamentos de crateras. Várias lagoas e zonas alagadiças (sag ponds) estão associadas a esta zona de falha, das quais a mais importante é a Lagoa do Capitão. A zona de falha da Lagoa do Capitão desloca lateralmente alguns cones mais antigos (por exemplo o Cabeço do Caveiro), o que demonstra movimentação oblíqua normal direita. A Falha do Topo tem expressão mais marcada onde atravessa o relevo do Vulcão do Topo, originando escarpa com importante desenvolvimento. A porção ocidental do graben está totalmente coberta pelo estrato-vulcão do Pico (< 10 ka), enquanto que, para leste, a depressão tectónica se encontra parcialmente colmatada por derrames lávicos e cones da Zona Fissural Oriental. A maioria das estruturas tectónicas na região planáltica oriental do Pico, cuja morfologia é marcada por alinhamentos vulcânicos e escarpas de falha curtas, pertence a este sistema.

As falhas conjugadas, com orientação NNW-SSE, são menos abundantes e encontram-se marcadas essencialmente por alinhamentos vulcânicos. Embora escassa, existe evidência de movimentação oblíqua normal esquerda. A fractura da Lomba de Fogo-S. João, ao longo da qual ocorreram os eventos da erupção de 1718, e o alinhamento vulcânico de Santo António são as estruturas mais evidentes. Na escala do afloramento, várias falhas pertencentes a este sistema foram observadas na saibreira do Cabeço Vermelho e numa trincheira aberta para estudos de paleossismologia na Falha da Lagoa do Capitão (Madeira e Brum da Silveira, 2003). A maioria dos cones de escórias localiza-se sobre estruturas WNW-ESE, mas os cones de maiores dimensões e o vulcão do Pico situam-se na intersecção daquelas com as falhas conjugadas de direcção NNW-SSE.

Do ponto de vista da estrutura geológica da ilha, é importante mencionar ainda a existência de evidências morfológicas da ocorrência de pelo menos dois grandes escorregamentos antigos nos flancos do vulcão escudo do Topo e do estrato-vulcão do Pico. Os dois eventos encontram-se registados na morfologia da ilha pelas cicatrizes de escorregamento do Arrife e de S. Mateus. Outros eventos deste tipo poderão existir no vulcão do Topo, um dos quais representado pela depressão da Caldeira de Santa Bárbara. A estrutura de S. Mateus localiza-se na vertente sul do vulcão do Pico e corresponde à vertente íngreme (36º de declive), levemente curva, sobranceira à povoação de S. Caetano. Esta estrutura encontra-se coberta por derrames modernos do Pico e parece ter resultado de escorregamento de antiga arriba, com cerca de 900 m de altura, talhada no substrato do Complexo da Calheta do Nesquim; o movimento de massa poderá ter sido induzido pelo peso do empilhamento lávico do vulcão do Pico. Para leste e oeste desta estrutura existe um ressalto no perfil da vertente sul do Pico que demonstra claramente que as lavas cobrem uma escarpa, a qual, pela sua posição, deve corresponder a uma arriba e não a uma escarpa de falha. As restantes estruturas encontram-se ligadas ao relevo do vulcão do Topo. A Caldeira de Santa Bárbara, pela sua localização pode corresponder à caldeira vulcânica resultante do colapso do topo daquele edifício ou a escorregamento da vertente NE do vulcão. A cobertura daquela região pelos produtos dos complexos vulcânicos da Calheta do Nesquim e da Madalena apenas deixa aflorar uma curta escarpa, levemente curva, virada a leste, o que não permite chegar a qualquer conclusão. A estrutura do Arrife apresenta morfologia típica de escorregamento em concha. A cicatriz apresenta um troço superior côncavo para sul e o bordo oeste rectilíneo. Junto do cone de Terras Chãs existe ainda um resto do bordo leste desta estrutura. A oriente do escorregamento do Arrife poderá ter existido outro de que restaria apenas um troço curto da escarpa do lado oeste.

Estudos de paleossismologia na Falha da Lagoa do Capitão, 400 m para leste da lagoa, revelaram movimentações em desligamento de idade inferior a 1000 anos, embora não tenham permitido individualizar paleossismos. Provam, no entanto o carácter activo daquela estrutura e a existência de uma componente de desligamento importante.

No que respeita a sismicidade histórica, apenas três sismos tectónicos significativos atingiram a ilha do Pico desde o início do povoamento: o terramoto de 1757, a crise sísmica de 1973, e o sismo de 1998. O primeiro evento causou danos significativos na região oriental da ilha, entre os quais a morte de 11 pessoas e o colapso da igreja da Piedade, que se encontrava em construção desde o ano anterior, juntamente com algumas casas. Na crise sísmica, que foi sentida no Pico e Faial de Outubro de 1973 até Maio do ano seguinte, o sismo principal (com magnitude 5,5) ocorreu a 23 de Novembro com epicentro na região de Santo António (Machado et al., 1973-74). Foram determinadas intensidades máximas (na Escala Modificada de Mercali ? MMI) de VII ? VIII em Santo António (Pico) e VII na Conceição e Flamengos (Faial). Forjaz et al. (1974) mencionam danos consideráveis em 604 casas no Faial e 2.000 no Pico (em resultado da fraqueza estrutural da construção tradicional), que deixaram quase 5.000 pessoas desalojadas; os efeitos na paisagem incluíram numerosos pequenos escorregamentos e queda de blocos nas arribas litorais da costa leste do Faial e costa norte do Pico, nos flancos da Montanha do Pico e no interior da Caldeira do Faial. É ainda citada deformação superficial desde a Lagoa do Capitão à Lagoa da Caiada, embora os estudos de neotectónica efectuados nos anos 90 não tenham encontrado qualquer evidência desses efeitos. Os sismos de 11 de Dezembro pioraram os danos causados pelo evento principal em cerca de 20% (Forjaz et al., 1974). José Madeira

Geografia A ilha do Pico, com 444,9 km2, é a maior das cinco ilhas que constituem o Grupo Central, representando 19,2 % da superfície do arquipélago dos Açores. Situa-se entre as coordenadas 38º 22? 57?? e 38º 33? 44?? de latitude norte e 28º 01? 39?? e 28º 32? 33?? de longitude oeste. A ilha mais próxima é a do Faial, a cerca de 6 km de distância, largura do canal no enfiamento da Ponta da Espalamaca (Faial) com os ilhéus da Madalena (Pico). A norte da ilha do Pico encontra-se São Jorge, num alinhamento insular quase paralelo, motivado pelas facturas que configuram a tectónica regional. O canal que as separa tem uma dimensão mínima de 18 km e profundidades na ordem dos 1200 m.

 

Com configuração alongada no sentido WNW-ESE, a ilha do Pico tem um comprimento de 46,3 km, entre a Ponta do Arieiro (Madalena) e a Ponta da Ilha (Manhenha). A largura máxima, medida na perpendicular ao eixo de maior comprimento, atinge cerca de 16 km, entre a Ponta Negra (Cabrito) e a Lage do Cavalo (Ponta de São Mateus). A linha de costa, com 151,8 km, apresenta-se ligeiramente recortada, onde pontuam ilhéus e enseadas pouco abrigadas. A acessibilidade ao mar não coloca dificuldades, excepto em troços com imponentes arribas mergulhantes, instáveis e sujeitas a frequentes derrocadas (Nordeste e Sudeste). As aves marinhas encontram nestes habitats condições favoráveis à nidificação, em particular as espécies de garajau (Sterna hirundo e Sterna dougallii) e de cagarro (Calonectris diomedea borealis). Os substratos rochosos prevalecem em todo o litoral (lajes que alternam com calhau rolado), não existindo praias de areia, havendo, contudo, numerosas poças e enseadas naturais aproveitadas para a prática balnear («piscinas»).

A ilha do Pico é a mais recente dos Açores e a que apresenta orografia mais acidentada, com 16% da sua área acima dos 800 m de altitude. De acordo com Nunes (1999), afloram rochas com idade inferior a 300.000 anos, o que atesta a juventude do vulcanismo subaéreo da ilha. Da sua descoberta à actualidade ocorreram três erupções históricas que originaram os «mistérios», termo local para designar as escoadas basálticas que destruíram os cobertos primitivos, hoje restabelecidos pelo surgimento de matos mistos com espécies endémicas e povoamentos florestais (Pinus pinaster), intercalados com núcleos de infestantes: Mistérios da Prainha (1562-64), de Santa Luzia (1718), de São João (1718) e da Silveira (1720). Nas encostas de média altitude, as coberturas de vegetação laurifólia estão bem representadas. Estas formações são essenciais para a preservação da avifauna protegida, enquanto habitats preferenciais do pombo-torcaz (Columba palumbus azorica) e de outras espécies com interesse conservacionista. Nas escoadas lávicas dos «mistérios» ocorrem micro-relevos de grande singularidade, como tumulis, lavas encordoadas, cristas de pressão, toes e formações com disjunção prismática. As cavidades vulcânicas são abundantes e diversificadas, um verdadeiro património à escala internacional, estando catalogadas mais de uma centena de grutas lávicas e algares onde se identificaram várias espécies cavernícolas autóctones, objecto de investigação apurada (estudos bioespeleológicos).

A Montanha do Pico e o Planalto da Achada são as duas principais unidades morfológicas da ilha. A primeira domina todo o sector ocidental, onde impera o imponente estratovulcão, truncado no topo por uma cratera de colapso com 550 metros de diâmetro médio e 25 metros de profundidade máxima. Na parte NE da cratera eleva-se o Pico Pequeno (Piquinho), o ponto mais alto de Portugal (2.351 metros). Trata-se de um cone quase perfeito (125 metros de altura) com vertentes instáveis e sujeitas a intensa erosão, origem dos frequentes deslizamentos e derrocadas que acentuam o grau de dificuldade das escaladas. Nos flancos da Montanha contam-se inúmeras erupções de carácter efusivo (tipo havaiano), por vezes associadas a cones de escórias (tipo estromboliano). Registam-se aqui estruturas vulcânicas de grande interesse, como hornitos, cones de spatter, tubos lávicos, lavas encordoadas e em tripa. Algumas destas áreas estão destituídas de qualquer tipo de solo de cobertura (horizonte orgânico), conferindo aos terrenos elevada permeabilidade e deficiente drenagem superficial (ausência de rede hidrográfica). Na perspectiva ecológica, a metade superior da Montanha do Pico acolhe as únicas comunidades alpinas dos Açores. Para preservar os valores existentes, foi classificada com o estatuto de Reserva Natural (Decreto Legislativo Regional n.º 15/82/A, de 9 de Julho).

O Planalto da Achada é a unidade morfológica que se desenvolve da base da Montanha do Pico ao extremo mais oriental da ilha (Ponta da Ilha), a cotas compreendidas entre 700 e 1.000 metros de altitude. Consiste numa extensa cordilheira vulcânica com uma orientação geral WNW-ESE, onde sobressaem numerosos cones de escórias (cerca de 170) e escoadas lávicas associadas de natureza basáltica. Estes aparelhos vulcânicos, com formas e dimensões variadas, estão implantados no alinhamento dos principais acidentes tectónicos da ilha, dos quais se destaca a Falha da Lagoa do Capitão. Os derrames lávicos no Planalto ocupam áreas restritas, estando recobertos por materiais piroclásticos sujeitos a permanente humidade, cuja alteração origina argilas e horizontes impermeáveis. Neste domínio de altitude formaram-se numerosas zonas húmidas de elevado valor ecológico e interesse turístico, como lagoas, charcos temporários e turfeiras de Sphagnum, frequentadas por aves migratórias dos ambientes dulciaquícolas, principalmente indivíduos da família Anatedea, observados, com maior frequência, de Setembro a Fevereiro.

Toda a região central do Pico é dotada de particularidades naturais invulgares, reconhecidas pela Rede Natura 2000 (SIC e ZPE), as quais são de alguma forma salvaguardadas pelo baixo valor económico da terra, uma vez que os solos apresentam fraca capacidade produtiva (baixo potencial agronómico). A elevada altitude impõe condicionalismos edafoclimáticos impróprios ao assentamento das populações, desde sempre remetidas para a periferia da ilha. A proliferação de espécies exóticas invasoras, a eutrofização das lagoas, a criação de bovinos e caprinos (pisoteio e herbivorismo), ainda que em regime extensivo, o turismo e a exploração de inertes (pedreiras e saibreiras) constituem-se como ameaças reais nesta área do Pico.

A parte ocidental da ilha reserva uma matriz paisagística com traços peculiares, composta por extensos campos de lava do Holocénico, ressequidos no Verão e expostos às intempéries que assolam o arquipélago nos meses de Inverno. Os «lajidos», como designam os picoenses, são escoadas do tipo pahoehoe emitidas a partir dos centros eruptivos da Montanha e das bocas secundárias ao longo das principais fracturas da sua periferia. Tratam-se de extensas áreas planas ou de inclinação suave desde cedo utilizadas para a cultura da vinha. O homem soube transformar a rocha negra improdutiva no seu modo de sustento, plantando e protegendo os vinhedos dos ventos fortes e dos efeitos da maresia, erguendo uma complexa e estruturada malha de muros de pedra seca chamados «currais». Em torno desta actividade criou-se um rico e diversificado património edificado, constituído por solares, adegas, armazéns, poços de maré, rola-pipas e ermidas. Em 2004, a Paisagem Protegida de Interesse Regional da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, instituída pelo Decreto Legislativo Regional n.º 12/96/A, de 27 de Junho, foi distinguida pela UNESCO com o estatuto de Património Cultural da Humanidade.

Embora o clima da ilha do Pico seja classificado, em termos genéricos, como temperado oceânico, existe contudo uma assinalável diferenciação climática em altitude e segundo as condições da fisiografia local. A influência da Montanha é decisiva no comportamento das variáveis meteorológicas, pois a pluviosidade é controlada por factores geográficos. A sua interferência na dinâmica atmosférica estende-se às ilhas do triângulo (Faial, Pico e São Jorge). No Pico, chove regularmente durante todo o ano, a temperatura é amena, a humidade relativa é sempre elevada e os ventos de SW são os dominantes e sopram com mais intensidade. Em traços gerais, é este o quadro climático que caracteriza a ilha, com excepção das zonas mais altas e agrestes do interior, sujeitas às fortes condições de instabilidade. Quanto a valores médios anuais, a temperatura supera os 17º C, a precipitação ronda os 1.000 mm/ano e a humidade relativa do ar atinge praticamente os 80%.

Acima dos 1.500 metros a queda de neve ocorre com certa regularidade, mais significativa entre Janeiro e Março, permanecendo o solo gelado durante dias ou algumas semanas. A precipitação ultrapassa os 5.000 mm/ano, as temperaturas podem ser negativas, os nevoeiros são constantes e as geadas frequentes. Segundo Thornthwaite, o clima do Pico tem a seguinte classificação: tipo (B) húmido (B1 na zona mais ocidental, B2 na restante faixa litoral e B3 e B4 nas médias altitudes); e tipo (A) super-húmido (Planalto da Achada e Montanha)

 

Os condicionalismos geológicos, geomorfológicos e climáticos tiveram (e têm) um papel determinante na actividade económica, na distribuição dos aglomerados urbanos e na evolução demográfica. O padrão de povoamento, do tipo aglomerado-linear, é um bom exemplo da adaptação do Homem às especificidades da geografia física desta ilha, desenvolvendo-se sobretudo junto à costa e ao longo das vias de comunicação. Os principais centros urbanos, sedes de concelho, encontram-se localizados junto ao mar: Madalena, São Roque e Lajes do Pico.

Ao nível do comportamento demográfico, desde meados do século passado que a população não cessou de decrescer, tendência que se prolonga até à actualidade. No entanto, as décadas de 60 e 70 foram as que evidenciaram uma taxa de variação populacional mais negativa, devido ao intenso surto emigratório que se gerou nesta época e que se generalizou a todo o arquipélago. Ao contrário de outras ilhas dos Açores, na década de 90 a situação não se alterou, continuando a registar-se uma variação populacional negativa (- 2,6%), sendo mesmo superior à patenteada na década de 80. Segundo o XIV Recenseamento Geral da População (INE, 2002), a população totalizava 14.806 habitantes, o que representa um decréscimo de 396 habitantes relativamente a 1991. Em 2001, o concelho da Madalena comportava o maior efectivo demográfico (6.136 indivíduos), seguido das Lajes do Pico (5.041 indivíduos) e de São Roque (3.629 indivíduos). A densidade populacional (33,3 hab/km2) era das mais baixas do arquipélago e a estrutura etária demonstrava sinais de envelhecimento, com mais de 50% da população com idades compreendidas entre 25 e 64 anos, contra 30% de jovens e cerca de 20% de idosos.

Os núcleos populacionais mais importantes estão dotados de infra-estruturas, equipamentos colectivos e serviços básicos: saúde, segurança, ensino, cultura, desporto e lazer. As acessibilidades ao exterior são garantidas pelos portos de São Roque e Madalena (mercadorias e passageiros) e pelo aeroporto, recentemente sujeito a obras de ampliação (concluídas em 2006). A rede de estradas e caminhos é agora aceitável, permitindo chegar a todos os pontos da ilha, excepto às partes mais íngremes e recônditas do interior da ilha e às impenetráveis áreas de mato.

A dependência do Faial (económica, política e social) prevalece na sua história até hoje, embora atenuada pela dinâmica empreendedora da sua população e pelas centralidades criadas pelo regime autonómico. As estreitas relações com a ilha vizinha ainda se estabelecem nas carreiras marítimas que atravessam diariamente o canal. A pesca é das principais actividades do sector primário, designadamente a captura de tunídeos destinada à indústria conserveira, que emprega, sobretudo, mão-de-obra feminina na transformação do pescado. As explorações leiteiras fornecem matéria-prima às diversas queijarias, cujo produto é muito apreciado pelas suas características artesanais (pasta mole). A produção de vinho não tem a importância de outrora, apesar dos ensaios para melhoramento das castas e dos incentivos para a recuperação de «currais», onde se produzia o verdelho que era exportado para longínquos mercados.

Actualmente, são os sectores de actividade secundário e terciário que têm maior dinamismo, ocupando cerca de 30% e 50% da população activa, respectivamente, devido ao crescimento da oferta de serviços e à instalação de dependências da administração regional, que geram emprego especializado. A taxa de actividade aumentou na década de 90, passando de 35% para 40%, e ao contrário da média regional, a taxa de desemprego manteve-se estável de 1991 para 2001 (3,2%). No entanto, o nível de instrução é baixo, sendo que a maioria dos habitantes detém apenas o 1.º ciclo do ensino básico. Note-se que apenas 4,3 % possuem o ensino superior, valor inferior à média regional (5,2%). Esta situação, aliada à percentagem ainda significativa de activos no sector primário (20%), favorece um panorama pouco favorável ao nível da qualificação profissional da população activa.

À semelhança das restantes ilhas, o turismo é também no Pico uma actividade emergente, sendo encarado como o pilar estratégico da diversificação da base económica. A oferta de alojamento tem progredido procurando responder às necessidades de um destino cada vez mais exigente, havendo cinco unidades hoteleiras (hotéis, pensões e outras) e quatro de turismo em espaço rural (2002). Multiplicam-se os serviços de apoio aos visitantes e os estabelecimentos de restauração, cultura, aluguer de viaturas, animação turística, entre outros. Como principal centro de baleação dos Açores, os agentes económicos souberam transformar a observação de cetáceos («whale watching») num negócio florescente, através da reactivação de uma actividade ancestral com um património de inegável interesse histórico e cultural (lanchas, botes baleeiros, vigias, antigas indústrias transformadoras, etc.). A captura de cachalotes (Physeter macrocephalus) para extracção de óleo e produção de farinhas para alimentação animal cessou definitivamente na década de 80 do século passado, devido à substituição dos produtos derivados da baleia e ao cumprimento de convenções internacionais. O primeiro operador de «whale watching» instalou-se nas Lajes do Pico, existindo cerca de 26 empresas ligadas às actividades náuticas (2003). João Mora Porteiro

História A primeira notícia sobre esta ilha data de 2 de Julho de 1439, quando a coroa de Portugal autoriza o Infante D. Henrique a colonizar as ilhas açorianas já conhecidas. Apesar desta ordem, o povoamento da ilha montanha só terá tido início a partir da década de 1480. Em carta datada de 28 de Março de 1481, a tutora do donatário dos Açores, D. Beatriz, prorroga, até Setembro do mesmo ano, a posse da ilha do Pico ao primeiro capitão-donatário picoense, D. Álvaro d?Ornelas, morador na ilha da Madeira, na condição de que este a mande povoar. O incumprimento desta ordem conduz a que, em 29 de Dezembro de 1482, o capitão flamengo da ilha do Faial, Jós d?Hutra, se torne no novo senhor da capitania picoense. Consumava-se, pois, o primeiro elo administrativo entre as ilhas do Faial e do Pico. A transferência da ilha do Pico das mãos de Álvaro d?Ornelas para Jós d?Hutra não só confirma que o Pico não estava colonizado nos finais do século XV, como comprova o interesse do poder senhorial em dinamizar o povoamento insular das ilhas do grupo central, compreensível mediante a crescente relevância geo-económica que o arquipélago dos Açores adquiria, relacionada com o maior empenhamento da monarquia portuguesa sobre Marrocos e a costa ocidental africana.

A capitania conjunta das ilhas do Pico e Faial manter-se-á activa até 1766, ano em que o Pico passa a ser parte integrante da província dos Açores, liderada por um capitão-general sedeado em Angra. A falência deste modelo centralizador é clara no período liberal e por isso, em 1836, os picoenses são integrados no terceiro distrito açoriano, composto também pelas ilhas do Faial, Flores e Corvo.

A topografia da ilha condicionou o rendilhado da orla picoense, que torna a abordagem marítima perigosa e difícil. Este factor, associado à infertilidade dos terrenos, constituídos, na sua maioria, por basalto recente (designados como «biscoitos» ou «mistérios», como é o caso do Mistério de S. João, resultado da erupção de 1718), à escassez de ribeiras na ilha e a um interesse prioritário sobre outras parcelas do arquipélago, terá sido uma das principais causas para a morosidade do povoamento ilhense, embora esta tenha decorrido num ritmo positivo. O primeiro município do Pico surge nas Lajes, provavelmente pela proliferação de ribeiras (que os topónimos comprovam) e pelas temperaturas mais elevadas verificadas nesta zona da ilha. Em meados do século XVI, uma nova área situada no norte da ilha tornava-se igualmente atractiva para novos povoadores. Assim, em 1542, os seus habitantes pedem ao rei D. João III a criação de uma segunda vila, justificando o pedido com a «opressão que os moradores das freguezias de nossa Senhora d?Ajuda e de S. Roque da ilha do Pico da banda do norte recebiam em ser mal providos de justiça por os ditos lugares serem longe da vila das Lajes de cuja jurisdição eram e o caminho ser muito mau de montanha e serra aspera e se faziam muitos males e roubos em suas terra por a justiça da dita vila não poder a isso acudir a tempo?». Assim surge, em 1542, o concelho de S. Roque. Só bem mais tarde, quando o elo entre as ilhas do Pico e do Faial se fortalece, é que há a necessidade de criar o terceiro concelho da ilha, constituído em 1723 na zona da Madalena.

A naturalidade flamenga do primeiro capitão-donatário do Pico poderá ter condicionado, em parte, a origem dos primeiros povoadores picoenses, pois na sua viagem para os Açores terá sido acompanhado por diversos familiares e gente de sua casa. Todavia, parece-nos que mais importante foi o contributo de povoadores de origem portuguesa, oriundos de diversas zonas da metrópole, que provavelmente já teriam estado na ilha da Madeira ou mesmo nas ilhas açorianas previamente povoadas, designadamente na Terceira. Esta hipótese parece-nos mais plausível, se relembrarmos que a primeira zona habitada do Pico foi a das Lajes, situada a sul da ilha, no lado oposto à localização da ilha do Faial. Gentes do Minho, do Alentejo e do Algarve terão sido, entre outras, determinantes para a formação do «ser» picoense, adaptando as respectivas características do vestuário, da alimentação, da religiosidade, da linguagem e dos costumes ao espaço insular. Todavia, a origem precisa destes povoadores é, ainda hoje, de difícil identificação, porque a maioria já teria passado por outras ilhas açorianas, designadamente por S. Jorge, Graciosa e Terceira, causando a dispersão de eventuais registos históricos.

A origem metropolitana dos primeiros povoadores foi determinante na organização da sociedade picoense. À semelhança do que sucedeu nas restantes parcelas açorianas, o Pico recebeu indivíduos de diversos grupos sociais, transplantando-se para a ilha a organização social reinol. Desta forma, encontramos indivíduos pertencentes a uma pequena nobreza, que se distinguem pela posse de terras e estilo de vida; verificamos uma forte presença do clero secular e regular, do qual se destaca a presença franciscana; e observamos um terceiro grupo, dividido entre mercadores, artífices, trabalhadores rurais e artesãos.

Para além destes três grandes grupos, que encerram em si mesmos uma diversidade considerável, há ainda a destacar a presença de judeus, comprovada nas Lajes nos inícios do século XVI e na Madalena, no decurso do século XIX. Há ainda a considerar a presença de escravos, orientados para o trabalho rural e doméstico e muitos deles exercendo a função de pastores de grandes terra-tenentes ausentes da ilha, como Pedro Álvares do Canto, morador na ilha Terceira; e de flamengos, com ligações ao capitão da ilha do Faial. As transformações económicas e mentais decorrentes na Europa ao longo dos séculos XVIII e XIX, e uma óbvia humanização do escravo no seio doméstico, garantiram a este instrumento de trabalho uma tardia, mas consistente obtenção da sua alforria. Desta forma, ao longo do tempo, muitos dos antigos escravos foram-se misturando com a população branca, deixando de constituir um grupo social facilmente identificável.

Desta amálgama de gentes se formou o carácter picoense, descrito da seguinte forma por António Lourenço da Silveira Macedo, na sua obra História das Quatro ilhas que formam o Distrito da Horta, datada de 1871: «São os picoenses geralmente dotados d?uma indole pacifica, laboriosos, engenhosos e robustos, sobretudo as mulheres, que muito ajudam os homens nos trabalhos rurais».

Com efeito, o estatuto feminino no seio da economia doméstica picoense deveria ser de elevada dimensão. Não deixa de ser curioso relembrar que, na época da Regeneração, as reformas realizadas no sistema de contribuição predial geraram no Pico diversos levantamentos populares, muitos deles protagonizados por mulheres. Aliás, perante estes «barulhos», a escassa força militar insular tornou-se insuficiente e o poder central foi obrigado a enviar uma esquadra do continente para acalmar os levantamentos femininos verificados, por exemplo, na freguesia da Candelária e na vila da Madalena. O crescimento demográfico da ilha conheceu, até à actualidade, um percurso com duas etapas distintas: uma primeira claramente positiva (até meados do século XIX) e outra negativa (desde meados do século XIX), como podemos observar no gráfico.

 

O volume demográfico confere à ilha pouca densidade populacional, justificável pelas razões orográficas e geológicas atrás referidas. Ponto positivo parece ser o clima mais seco e menos húmido do que outras parcelas açorianas, o que poderá contribuir para que esta ilha tenha apresentado e apresente, actualmente, uma das menores taxas de mortalidade do arquipélago, e onde a esperança de vida passou de 48.7 anos em 1940 para 70.5 em 1981.

A quebra demográfica verificável a partir de meados do século XIX e no decurso do XX resulta essencialmente dos índices da emigração voluntária. Distinga-se esta das levas de recrutamento dos finais do século XVIII e inícios do século XIX, que visavam integrar os recrutas picoenses em unidades militares do continente e do Brasil. É o caso dos 84 mancebos recrutados em 1799 e dos 129 em 1811. Aliás, o desagrado por esta medida leva a que muitos jovens fujam da ilha, de forma a evitar a sua integração neste movimento emigratório de cariz coercivo. Já voluntária é a emigração dos séculos XIX e XX, embora a expressão deste voluntariado seja questionável, considerando os motivos da emigração. Entre 1830 e 1860, por exemplo, 51% dos homens e 41% das mulheres não morrem na freguesia da sua naturalidade, designadamente S. Caetano. A emigração para o Brasil esvazia as casas, com as implicações sociais e económicas daí decorrentes. Uma segunda incidência emigratória surge no século XX, principalmente entre os períodos de 1900-1920 e de 1960-1980, agora direccionada para o Canadá e para os Estados Unidos da América. A população de Santo Amaro, por exemplo, perdeu 30% dos seus habitantes na segunda metade do século XX. O decréscimo populacional sucedeu, pois, nos últimos séculos: no século XIX, o Pico tinha 21.340 pessoas; no século XX esse valor diminuíra para 15.224, consequência directa dos fluxos emigratórios, e o censo de 2001 registava nova quebra, com 14.806 indivíduos, provavelmente agora condicionada por uma baixa taxa de natalidade.

A fraca densidade demográfica e a elevada taxa de emigração são um reflexo directo das dificuldades de sobrevivência nesta ilha, que em muito condicionou as potencialidades de exploração económica. Neste sentido, a economia picoense resulta numa variedade produtiva considerável, imposta pela diversidade geográfica que a ilha apresenta e documentada em diversos períodos históricos.

A primeira actividade económica picoense foi a criação de gado, contemplada nos finais do século XV pela tutora da donatária, D. Beatriz, quando permite a Jós Dutra que utilize a ilha como zona de pastagem explorada pela população faialense. Desta realidade nos informa o italiano Pompeo Arditi, na sua viagem pelo Pico, no ano de 1567, pois escreve que a ilha é apenas habitada por «pastores que vivem como selvagens e se alimentam de animais que apanham na floresta, dos quais a ilha procria em infinita quantidade, isto é, vacas, cabras, ovelhas, porcos e coelhos». É certo que esta perspectiva deverá ser redutora, nomeadamente se relembrarmos que os moradores de S. Roque tinham reclamado há pouco tempo a emergência de um concelho autónomo, obviamente apenas sustentável pela diversidade de ocupações, mas dá um retrato de como a criação de gado tinha um peso importante na economia da ilha neste período. A transformação de produtos associados a este recurso económico, como a manteiga e o queijo, são ainda hoje actividades importantes, como se comprova pela existência de um tipo de queijo específico da ilha-montanha. Aliás, a memória desta actividade foi recentemente recuperada pela inauguração de um monumento dedicado aos Pastores, no ano de 2003, na freguesia de S. João.

Todavia, a exploração da terra foi o elemento marcante da economia picarota, imprescindível para a subsistência da população. Mas nesta ilha, à instabilidade das produções alimentares, factor que caracteriza a economia agrícola do Antigo Regime, acresce a improdutividade dos solos picoenses, uma vez que a profusão dos «mistérios» não só torna escassa a produção do cereal, alimento essencial na dieta mediterrânica, como de outros bens. Desta forma, os anos de fome eram uma realidade temida pela população, como sucedeu em 1713, quando «o povo se viu obrigado a comer soccas e raizes para sustentar a misera existencia».

Neste sentido, o Pico singularizou-se face às restantes ilhas do arquipélago pela dominância da vinicultura, que apenas teve alguma projecção em outras ilhas do grupo central. Introduzidos na ilha nos finais do século XV, os vinhedos encontraram um espaço acolhedor no interior dos «currais» de rocha vulcânica picoense. A paisagem de mar de chumbo coalhado foi desabando e, em seu lugar, surgiu um negro labirinto retalhado, esculpido pela força e vontade de gerações de picoenses. A produção de vinho foi cada vez mais profícua, alcançando os valores mais elevados ao longo dos séculos XVIII e XIX. Durante este período, o vinho picoense foi apreciado no espaço regional, sendo exportado para S. Miguel e Terceira. Mas é no mercado internacional que encontramos os principais consumidores, não só do vinho como da aguardente picoenses, sendo aquele exportado principalmente para as colónias britânicas da América do Norte e esta para o Brasil. A venda destes dois produtos permitia aos picoenses a obtenção de alimentos básicos para a alimentação diária, nomeadamente a farinha, o arroz, legumes, bacalhau, entre outros.

Todavia, a partir de 1862, as pragas do oídium e da filoxera destruíram muitos vinhedos por toda a ilha, provocando o desaparecimento das castas até então existentes. Só no final desta centúria se tentou reactivar esta cultura, agora com a introdução de novas castas, como a do Boal, Dedo de dama e Moscatel, e entre as quais se destaca a do Arinto, Verdelho, Bastardo e Terrantêz, ainda hoje cultivadas. Cerca de 1870, a uva Isabela, de origem americana, é introduzida na ilha, onde obtém um grande sucesso, designadamente na produção do vinho de cheiro. Ao longo do século XX, foram experimentadas outras novas castas, de origem europeia, como a Rifete, e americana, como a Ferdinand de Lesseps, graças ao esforço de pequenos viticultores que, a título pessoal e de uma forma artesanal, tentaram ultrapassar as dificuldades do passado. Em meados do século XX, começaram a surgir novos apelos para que a viticultura retomasse o apogeu comercial dos tempos anteriores, agora com base num fabrico industrial. Em 1950, é apresentado um projecto para a construção de uma cooperativa vinícola sedeada na vila da Madalena. Assim, em 1961, a Junta Nacional do Vinho edifica a actual Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico. Todo este investimento na vinha do Pico foi premiado pela UNESCO que, em 2004, a considera como Património da Humanidade. Reconhecia-se, assim, a paisagem vinícola do Pico como uma verdadeira peça de escultura de autoria colectiva.

Entretanto, como forma de ultrapassar os prejuízos do decréscimo da cultura da vinha, os picoenses tentaram arranjar outras formas de rendibilizar os terrenos que, até então, eram utilizados pelos vinhedos. O cultivo de frutos como as laranjas, maçãs, pêssegos e figos (estes dois últimos também utilizados na produção de aguardente) tornou-se uma importante actividade alternativa, que rapidamente atingiu níveis capazes de suportar a exportação no circuito regional. Desta forma, tornou-se um hábito diário a deslocação de picoenses para a ilha do Faial com o objectivo de proceder à venda da fruta. Durante o Verão, também os mercados terceirense e micaelense tornavam-se importantes zonas de consumo destes géneros. Como vemos, ao longo da história picoense, a diversidade produtiva foi essencial para a sobrevivência da população picoense. Em 1924, n?As Ilhas Desconhecidas, Raul Brandão afirmava a especialidade económica de diversas freguesias: «Santa Luzia é a freguesia das figueiras, S. Roque a dos vinhos, Prainha a do milho e do trigo, Santo Amaro, perita na construção de embarcações, trabalha também em esteiras, e o Cais do Pico e as Lajes passam por as duas grandes freguesias da pesca da baleia». Se é verdade que este autor não refere a proeminência do concelho da Madalena na produção de vinho, alerta para outra actividade económica que merece o nosso destaque: a caça à baleia. Este recurso económico desenvolve-se apenas no século XIX, por influência americana. Assim se formou a imagem do picoense baleeiro, hoje em dia associada como característica tradicional da ilha do Pico e relembrada anualmente em Agosto, na festa dos Baleeiros celebrada na vila das Lajes. A relevância desta actividade é indicada pelo já citado Raul Brandão, quando refere em 1924 que os baleeiros «Deixam um casamento ou um enterro em meio, um contrato ou uma penhora, as testemunhas e a justiça, e correm desesperados a arrear à baleia».

Vinho e caça à baleia tornaram-se essenciais para a economia desta ilha sem bons portos naturais, usufruindo apenas de uma série de pequenas enseadas e calhetas apenas navegáveis durante o período estival. É desta forma que se compreende o forte elo que se criou entre as ilhas do Pico e do Faial. O seguro porto da Horta tornou-se, pois, o único meio de internacionalização da economia picoense, principalmente utilizado na exportação do vinho e da aguardente picoenses, estabelecendo-se entre ambas as ilhas uma cumplicidade histórica que perdura até aos nossos dias. As dificuldades da costa marítima espelham-se também no interior da ilha. Em 1839, Joseph Bullar referia que a única forma de conhecer a ilha era a pé, pois não havia cavalos, mulas ou burros para alugar, nem pousadas ou hospedarias para descanso. Ainda em 1970, o padre José Maria das Neves registava as dificuldades em viajar pelos caminhos pedregosos e íngremes da ilha, até inacessíveis por parte de animais. Actualmente, a rede de transportes da ilha conta com estradas viáveis, que permitem uma rápida acessibilidade, desenvolvimento que foi acompanhado por um investimento em sectores essenciais: se em 1970, apenas 25,3% da população tinha energia eléctrica e apenas 19,2% tinha água canalizada, actualmente praticamente toda a população usufrui destes serviços. Susana Goulart Costa

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