Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

arqueologia subaquática

Situado em pleno Atlântico, à latitude da Europa do Sul, o arquipélago dos Açores, descoberto e habitado por navegantes e povoadores portugueses desde o século xv, veio a desempenhar nos séculos seguintes as funções de placa giratória mundial, fundamentalmente nas rotas de torna-viagem do Oriente e das Américas, em favor e obediência aos alísios característicos da região.

Baluarte e entreposto avançado ? lugar de abrigo e de passagem obrigatória de navios e frotas de comércio e de guerra dos impérios ibéricos ?, o arquipélago contou também com a imprevisibilidade e a frequente violência do seu mar entre os factores que dele fizeram um cenário habitual de naufrágios.

Não admira, pois, que o mar do Açores seja hoje considerado, por uns, um santuário intemporal do património cultural subaquático mundial e, por outros, o novo eldorado do imaginário da busca dos tesouros afundados.

Com efeito, o potencial arqueológico do mar dos Açores é eloquentemente ilustrado pelos cerca de 800 navios naufragados, recenseados até à data, dos quais, no entanto, apenas 577 se encontram documentados. De sublinhar que destes se perderam 135 no século xvi, 90 no xvii, 62 no xviii, 233 no xix e 56 no nosso século, correspondendo a grande maioria dos casos a navios ibéricos ? 161 portugueses e 95 espanhóis ? e discriminando-se entre os restantes 84 ingleses, 32 franceses, 21 norte-americanos, 10 alemães, 7 italianos, 5 noruegueses, 4 brasileiros, 2 dinamarqueses, 2 gregos, 1 liberiano e 1 russo. Do quantitativo global, 59 casos terão ocorrido no alto mar e os restantes junto ou nas proximidades das diversas ilhas do arquipélago: 1 nas Formigas, 9 em Santa Maria, 14 na Graciosa, 15 no Corvo, 25 no Pico, 32 nas Flores, 43 em S. Jorge, 83 no Faial, 138 em S. Miguel e 157 na Terceira ? 88 dos quais na baía de Angra. Finalmente, saliente-se que ao total se identificaram até à data 113 navios com cargas preciosas, o que explica o fascínio exercido por este diminuto e bem circunscrito período da História da Humanidade.

Em função das causas que deram origem a perdas de navios é possível considerar hoje dois tipos de situações que impõem uma aproximação arqueológica diferenciada. Uma respeita às situações de naufrágios contra a costa ou nas proximidades desta e que constituem a esmagadora maioria; outra respeita a naufrágios ocorridos ao largo, ocasionados fundamentalmente por actos de guerra e pirataria.

Merece ser assinalada aqui a natureza geomorfológica da zona de interface e dos fundos no mar dos Açores que modeliza de modo sui generis a aproximação arqueológica a esta problemática. Com efeito, nos Açores, a tradicional antinomia entre jazidas ditas pouco profundas e profundas assume especial significado, dadas as características específicas do relevo submarino. Este caracteriza-se pela ausência de plataforma continental, por vertentes abruptas descendo para as profundezas e pela míngua de zonas sedimentares típicas dos meios estuarinos e dos planos de água interiores. Assim, há a considerar os sítios acessíveis ao mergulho autónomo ? havendo ainda que destrinçar, neste caso, a situação dos sítios acessíveis a trabalhos arqueológicos continuados (até cerca de 40 m) ? e os sítios mais profundos, hoje acessíveis com o recurso a técnicas sofisticadas. Por outro lado, há a considerar os fundos inacessíveis, mesmo a profundidades não abissais, sem o recurso a veículos autónomos ou semi-autónomos, habitados ou simplesmente telecomandados.

De salientar, no entanto, que as tecnologias de ponta da investigação submarina, susceptíveis de prestar um contributo decisivo à investigação arqueológica, constituem, por outro lado, uma ameaça potencial para o património cultural submerso quando não utilizadas dentro de adequados parâmetros técnico-científicos e legais. Situação esta que é extensível à utilização das modernas técnicas de detecção remota, aplicáveis em quaisquer contextos subaquáticos, independentemente da sua profundidade. Deste modo, o risco da ocorrência de programas de busca, clandestinos e camuflados, incidindo sobre as riquezas reais e imaginárias submersas no mar dos Açores, acrescido da dificuldade de fiscalização de uma tão vasta área, não poderia deixar de suscitar as mais sérias apreensões. Este problema constitui, pois, uma realidade na ordem do dia e um desafio para a Região e para o País, numa época em que a própria Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar ? já de si recente e não subscrita por muitos países ? pouco ou nada refere a propósito de «recursos culturais». Desde logo, parece merecer especial atenção, no caso dos Açores, a recente instalação na região de empresas internacionais vocacionadas para a pesquisa profunda, e o desenvolvimento de programas de pesquisa alegadamente interdisciplinares, mas susceptíveis de encobrir o propósito da localização de navios afundados com cargas valiosas.

Sem prejuízo da atenção que deve merecer esta questão, o mais premente desafio da nossa época é, no entanto, o da adequada gestão do património cultural submerso na zona de interface, situado a menores profundidades, acessíveis ao mergulho autónomo. Se no plano das competências e dos princípios de gestão arqueológica o envolvimento da Região Autónoma dos Açores parece necessário e natural, no plano da logística operacional ele parece incontornável, uma vez que qualquer gestão efectiva nesta área do património, nomeadamente em situações de emergência ou no caso das habituais descobertas fortuitas, terá de se basear numa efectiva capacidade de intervenção local.

Ilustram esta asserção dois casos recentes. Um respeita à descoberta e declaração oficial de um bracelete de ouro feita por um mergulhador profissional na costa de S. Mateus, Terceira (Braga, 1996), caso inédito numa região em que os raros achados valiosos provenientes do fundo do mar, cuja memória se não perdeu, se encontram em colecções particulares (Martins, 1990). Outro refere-se à bem sucedida recuperação arqueológica de um magnífico canhão de bronze fundido no reinado de Francisco I, descoberto nas imediações do monte Brasil (Monteiro, 1996), que veio juntar-se a uma das mais vastas colecções de bocas de fogo provenientes de meio submerso existentes em Portugal, e da qual se destacam algumas peças notáveis (Lima, 1969-70 e MAH, 1976).

Esta necessidade de a região dispor de uma capacidade de intervenção autónoma na área do património cultural submerso ficou, no entanto, superiormente demonstrada por ocasião do surgimento do projecto de construção do Porto de Recreio de Angra do Heroísmo, obra de insuperável impacte no património cultural submerso local, e que tornou obrigatório o desencadeamento de uma intervenção arqueológica de carácter preventivo.

Na sequência dos trabalhos preliminares de arqueologia subaquática realizados neste âmbito (Garcia e Monteiro, 1996 e 1997), que contaram com uma operação de prospecção geofísica recorrendo à sísmica de reflexão realizada em colaboração com o Institute of Nautical Archaeology (Crisman e Rutledge, 1996), foram identificados seis destroços de navios naufragados cobrindo um leque cronológico dos séculos xv-xvi ao xix. Dois deles, devidamente identificados como pertencendo ao Run?Her e ao Lidador, afundados, respectivamente, a 5.11.1864 e a 7.2.1878, e que tinham o casco em ferro. O primeiro destes navios merece, aliás, especial menção por constituir um dos raros exemplos de um «furador de bloqueio» do tempo da Guerra Civil Americana. Os restantes casos ? designados convencionalmente de A a D ? consistem em restos da estrutura do casco de navios de madeira. Destes, merece especial destaque o denominado Angra C, por corresponder a um período precoce da história dos Açores. Com efeito, as datações pelo método do radiocarbono efectuadas a partir de diversas amostras de peças do casco permitem situá-lo numa faixa cronológica entre o final do século xv e o início do século xvi. A estrutura ? que tem as dimensões aproximadas de 6 por 19 m ? parece corresponder a uma parte do casco de um grande navio, disposto aproximadamente na horizontal, sob 1,5 m de sedimentos, a cerca de 6 m de profundidade.

Independentemente da natural prioridade da salvaguarda e investigação do património subaquático da baía de Angra e suas imediações, o extraordinário potencial das diversas ilhas do arquipélago, e do mar dos Açores em geral, aponta para que a Região se venha a tornar um dos grandes pólos de desenvolvimento da investigação arqueológica náutica e subaquática à escala mundial. Francisco J. S. Alves e Paulo Monteiro (Abr.1997)

Bibl. Agostinho, J. (1946), Achados Arqueológicos nos Açores. Angra do Heroísmo, ed. do autor. Braga, I. (1996), As descobertas dos pescadores. Público, 10 de Julho. Crisman, K. (1998), Crossroad of North Atlantic: the 1996 and 1997 Angra Bay shipwreck survey, Terceira Island, Açores. Institute of Nautical Archaeology Quarterly. College Station, 25, 2: 3-11. Garcia, C. e Monteiro, P. (1996 e 1997), Intervenção Arqueológica Subaquática na Baía de Angra do Heroísmo. Relatórios preliminar e final. Angra do Heroísmo. Lima, B. (1969-1970), Uma notável peça de artilharia portuguesa do século xvi. Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, 27-28: 520-532. Museu de Angra do Heroísmo (s.d.), Some important materials salvaged in underwater operations conducted by the Museum last 15 years. Catálogo-Desdobrável, Angra do Heroísmo, MAH. Martins, F. E. O. (1990), Os Açores nas Rotas das Américas e da Prata. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura/Câmara Municipal/Delegação de Turismo da Ilha Terceira. Monteiro, P. (1996), Relatório do Salvamento Arqueológico de Um Canhão de Bronze de Francisco I. Angra do Heroísmo. Riley, C. (1995), O Corvo ? Um lugar à margem (história da perificidade insular). O Faial e a Periferia Açoreana nos Séculos XV a XIX. Horta, Núcleo Cultural da Horta: 57-70.