Na dormência do mundo moderno, no seio de uma cidade impessoal, um espectador anónimo percorre a sua rotina diária na carreira nº 33, deixando que o torpor do autocarro lhe invada os pensamentos e o faça esquecer da sua inconsequente existência.
No rodeio de um lugar que não sente como seu e a que nunca procurou pertencer ou conhecer verdadeiramente, agarra-se aos vislumbres de vidas alheias que espia no autocarro que apanha todos os dias, refugiando-se nos laivos de esperança que recolhe dos outros passageiros com quem partilha a cabine do veículo.
Coleciona esperanças! Momentos roubados a estranhos que, por fé, vontade (ou ausência dela) ou paixão, não são trespassados pelo peso do anonimato da grande cidade nem são corrompidos pela sua dormência: o Jovem que Habita o Corpo Errado, a Senhora dos Sapatos de Laçarotes e o Jovem Casal.
O Jovem que Habita o Corpo Errado é a consciência do sentimento de diferença e a certeza do desconforto de habitar um ser que não se é. Há esperança, por pequena que seja, nessa infeliz certeza.
A Senhora dos Sapatos de Laçarotes espelha confiança, caminha como se fosse a dona do Mundo. E talvez seja. Há esperança que sim.
O Jovem Casal é esperança é movimento. A acontecer a cada segundo que passa, a cada pequena conquista que o amor vence.
E destes pequenos furtos o Colecionador constrói mundos singelos, imagina percursos, antevê acontecimentos, nutre sofrimentos e acumula as pequenas esperanças que lhe tornam suportável a própria vida.
Mas com o passar do tempo, a ambição toma conta do Colecionador e os meros vislumbres não bastam, não lhe chegam à alma, não lhe sossegam o peito.
Precisa de mais! Precisa de fazer parte, de ser também.
Os olhares demoram-se nos seus espiados, as emoções transbordam-lhe com a soma das frustrações alheias e vê-se descoberto, espiado também. No fundo, todos roubam a todos afinal.
São uma soma de esperanças e desesperanças.
São vida.